sexta-feira, 30 de setembro de 2011

UM PUNHADO DE LIVROS DISPOSTOS À RODA DE MIM

Estou com mais do que um livro entre mãos. Ainda não acabei Um Par de Olhos Azuis. Iniciei Fome. Não resisti e comprei um outro, na fnac - cujo nome não sou capaz de referir de memória. Mas, entretanto, emprestaram-me um, de Domingos Monteiro: um romance, não um conto. (Só conhecia, de Monteiro, um punhado de contos). Chama-se O Caminho Para Lá e, de facto. prendeu-me. Os outros estão, momentaneamente suspensos. Por excelentes que sejam, aguardam - às vezes acontece-me isto: um certo livro impõe-se, exige uma relação de exclusividade, e eu comprometo-me.

sábado, 17 de setembro de 2011

THOMAS HARDY: UM PAR DE OLHOS AZUIS


O romance parece uma rede cultural e literária. Notem o conjunto de referências subjacentes ou explícitas: o título de cada capítulo, por exemplo, é citação-chave (de Shakespeare, principalmente, mas não só: Marlow, Gray, Burns...) e há outras, constantes, a autores e a obras que, de certa forma, definem o universo e a tradição com que Um Par de Olhos Azuis dialoga e de que se pretende a continuidade.

Com uma escrita delicada, muito suave, descrevendo o ambiente e as personagens com agudeza, Thomas Hardy revela-nos pessoas na sua ambiguidade de sentimentos e valores e naquela hesitação humana que Shakespeare tão brilhantemente nos soube mostrar. Esta capacidade de captar pessoas que nem sempre compreendemos, mas, sobretudo, que nem sempre se compreendem muito bem a si mesmas, nem aos seus sentimentos, nem, muitas vezes, às razões secretas do próprio coração, é uma das linhas que distinguem as maiores obras.

Este Romeu e esta Julieta, contrariados, no desejo que os compele um para o outro, pelo pelo pai da rapariga, têm nome para a atracção que sentem. Amor, paixão. Subtilmente, Hardy vai insinuando que as palavras definitivas são enganadoras. Qualquer atracção é composta de diversos ingredientes, desde a inocência ao interesse, desde uma afinidade de gostos à excitação provocada precisamente pelo facto de esse amor ser impedido por agentes extrínsecos. E os ingredientes vão-se recompondo em novas e paradoxais combinações, com diferente poder de união. A decisão irreversível tomada uma manhã pode parecer-nos estranha e impossível na manhã seguinte.

Os preconceitos são analisados por Hardy com um humor doloroso, mas, ao mesmo tempo, com uma disponibilidade para aceitar e amar todas as personagens nos desajustamentos e nas fragilidades. Escutamos uma voz cuja subtileza pode ser confundida, por vezes, com pouca profundidade: são os pequenos gestos que contam, os movimentos íntimos, minúsculos e mutáveis, muito mais do que as palavras grandiloquentes e as decisões inabaláveis; os preconceitos, muito mais do que o carácter ou as filosofias; o coração, com as suas razões discretas, seguramente mais do que a razão.

Ao humor e à delicadeza da narração de Hardy há que acrescentar a sua perícia na forma como lida com as tensões e com a ignorância do leitor relativamente ao todo dos factos. Multiplicam-se fios de mistério que nos prendem, situações que não sabemos como interpretar, dúvidas que nos fazem penetrar ansiosamente o capítulo seguinte. Camilo e Proust são dois nomes que recordaríamos para tentar dar a ver em que consiste um certo estilo, um certo tom, um certo romantismo que ama as suas personagens, mas não crê excessivamente na pureza absoluta do que as move.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

ELOGIO DO REVISOR



Não sei há quanto tempo se estabeleceu como profissão o trabalho de rever as provas antes de se publicar um livro. O «meu» revisor, ou seja, a pessoa que reviu meticulosamente o romance Nada Mais e o Ciúme, sabê-lo-ia com certeza.

Trindade Coelho, em In Illo Tempore, conta a seguinte história que resumo de memória: num texto em que ele escrevera «dizia-se à saciedade», o tipógrafo emendou «saciedade» por «sociedade»; Trindade Coelho tornou a escrever «saciedade», e o tipógrafo alterou de novo. Até que, ao fim de duas ou três alterações e reposições, o autor falou com o homem, que lhe respondeu: «Ficará como o senhor doutor quiser, mas olhe que toda a gente sabe que se diz "sociedade", não "saciedade".» Existiriam já "revisores profissionais"? Ou era aos tipógrafos expeditos que cabia rever os textos?

Há livros mal revistos ou a que, mais provavelmente, tenha de todo faltado uma revisão. O autor pode ser extraordinário, mas a verdade é que se nota essa diferença. Uma distracção aqui, um desconhecimento ali, uma fragilidade acolá. Em contrapartida, qualquer romance melhora substancialmente se tiver passado pelas mãos de um revisor a sério. Talvez alguns escritores se sintam ameaçados. Não deviam. O revisor não é somente um homem que domina perfeitamente a língua, deve ser uma pessoa superiormente culta, que se passeia com grande à vontade por muitas esferas do saber. Com o "meu" revisor não só fui chamado a prestar atenção a pormenores de pontuação que me haviam escapado, como a erros de conteúdo relativos - por exemplo - aos poderes da raia [zoologia], às regras do sumo [desporto; cultura japonesa]. Detectou referências que eu discretamente fizera, sem querer ostentar, remetendo-as para Hitler [história, política internacional] ou para Nietzsche [filosofia], não, por sua vez, para se exibir, mas para me sugerir que contextualizasse de outro modo.

Em algumas das sugestões que fez pareceu-me evidente alguma ironia. Sobretudo quando se tratava de neologismos que eu ousava. A ironia fere-me, irrita-me. Como se uma mente mais culta ou mais inteligente do que a minha se divertisse à custa das limitações que revelo. Mas que querem? Há na competência e no rigor algo que se confunde facilmente com arrogância. Parece-nos sempre que as pessoas que realmente sabem e se indignam com as falhas que consideram "inadmissíveis" são pouco tolerantes.

Robert Conquest apresentou três leis da política, a primeira das quais determina que «toda a gente é de direita em relação àquilo que sabe melhor». Admito que o termo «direita» seja, aqui, muito ambíguo. Mas trata-se, explica-nos Scruton, de se mostrar «desconfiado em relação ao entusiasmo e à novidade e respeitoso para com a hierarquia, a tradição e os modos estabelecidos». Julgo, é claro, que em literatura, onde a originalidade não deixa de ser fundamental, qualquer apreciação enquistada num «respeito» fundamentalista pela «hierarquia» e pela «tradição» possa pecar por obtusidade. Vasto é o campo onde a visão do artista tem de se impor - e se vale alguma coisa, caberá ao futuro julgar, mais do que ao revisor. Mas mesmo assim. É talvez este critério de pouca abertura que torna, os bons revisores, profissionais escrupulosos e impacientes com os erros.

Perante um revisor como aquele que trabalhou sobre o meu texto, sinto-me frágil e embaraçado. Chego a pensar: «Mas afinal eu não sei escrever.» Todavia, dois minutos após termos concluído a nossa reunião, percebo que o romance que eu escrevera está agora muito melhor, muito mais sólido na forma e com menos imprecisões no conteúdo. Quase - ocorre-me - como se tivesse sido escrito em co-autoria. E agradeço não sei bem a quem ou a quê [ao destino, talvez], que, mais do que o facto de escrever um romance que foi sujeito a uma revisão, esta fosse feita por um revisor de primeira.

sábado, 3 de setembro de 2011

O.K. BOUWSMA: CONVERSAS COM WITTGENSTEIN


Considero A Namorada de Wittgenstein um dos dos blogues mais belos, subtis e originais do que se convencionou chamar a blogosfera. Infelizmente, a minha tentativa de contacto com a sua autora acabou por se revelar um exemplo de incomunicação, e os meus elogios tiveram, segundo ela, o efeito pernicioso de lhe anestesiar o espírito e a criatividade. Não o fiz por mal. E a minha admiração por um blogue perfeito permanece incólume.

De certa forma, compreendo a sua reacção e as suas palavras. Essa atitude de rigor, aliás, numa pessoa que prefere evitar a distracção e a futilidade, tem tudo que ver com o próprio Wittgenstein, que a inspira e é chamado ao título do blogue em causa.

Releio um livro muito antigo, Conversas com Wittgenstein, e é a propósito deste que o perturbador desencontro entre mim e a sua "namorada" me vem à memória. O livro a que me refiro nunca chegou verdadeiramente a ser escrito. Aquando do falecimento de O.K. Bouwsma, encontrou-se, no seu espólio, uma série de fichas, com tópicos e rascunhos brevemente alinhavados, que procuravam dar conta, com um notório fascínio, das conversas que ele mantivera com o filósofo. Em Julho de 1949, Ludwig Wittgenstein visitou a Universidade de Cornell: esse foi o início de um conjunto de sessões (que continuariam mais tarde, no Smith College, em Outubro, e em Oxford, de Agosto de 50 a Janeiro de 51) ao longo do qual Bouwsma e Wittgenstein, muitas vezes sozinhos, algumas vezes inseridos em pequenos grupos de académicos, discutiriam temas, reflectiriam sobre questões que os clássicos nos legaram, pensariam em diálogo.

Wittgenstein tinha a fama de ser intratável. As suas explosões de irascibilidade eram frequentes. Desde o princípio que Bouwsma refere a sua inibição diante do grande filósofo, o medo de o agastar ou de lhe ferir a susceptibilidade. Mas o que este livro, na sua forma incompleta e descosida, expõe de maneira singular, é o prodigioso espectáculo do acto de pensar: somos testemunhas do nascer das ideias no contexto da conversa; de uma busca de imagens e de exemplos para ilustrar o «conteúdo teórico» (e os exemplos e as imagens de Wittgenstein são extraordinárias, como sabemos); e, principalmente, de um esforço quase implacável de rigor: é fácil pensarmos mal; é fácil iludirmo-nos pela própria equivocidade das palavras que temos ao nosso dispor: para Wittgenstein, pelo contrário, é sempre possível segurarmos limpidamente o essencial, seguirmos o raciocínio evidente, excluindo o canto das sereias metafísicas.

Ora, deste ponto de vista, a sua indignação permanente, a sua irritabilidade fácil, a sua hipersensibilidade perante todas as formas de aparência e engano (em que o social é, afinal, pródigo) tornam quase bela a misantropia em que se fecha: aquela falta de paciência para as encenações da vida em sociedade.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

HÁ OBRAS QUE, SE COMEÇAMOS A CITAR, TEMOS DIFICULDADE EM PARAR DE CITAR

«Certo dia, Rosewater disse uma coisa interessante a Billy acerca de um livro que não era de ficção científica. Disse que tudo o que havia para saber da vida estava em Os Irmãos Karamzov de Fédor Dostoievski.
»- Mas isso agora já não basta - disse Rosewater.

»Uma outra vez, Billy ouviu Rosewater dizer a um psiquiatra:
»- Eu acho que vocês vão ter de inventar uma data de mentiras novas, pessoal, se não as pessoas simplesmente não vão querer continuar a viver.

»Havia uma natureza-morta na mesa de cabeceira de Billy: dois comprimidos, um cinzeiro com três cigarros sujos de batom, um cigarro ainda aceso e um copo de água. A água estava morta. E é assim. Havia ar a tentar sair da água morta. As borbulhas colavam-se às paredes do copo, demasiado fracas para saírem.»

Kurt Vonnegut, Matadouro Cinco

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

KURT VONNEGUT: MATADOURO CINCO


A primeira referência que tive de Kurt Vonnegut foi esta. O nome «Vonnegut» não fazia, até então, parte da minha galáxia. Pesquisei ao de leve, cheguei a folhear mas, para ser sincero, o dinheiro coloca-me sempre inúmeros dilemas e, na altura, estava mais empenhado em outros autores. Fiz mal.

Descubro Vonnegut agora, em face de uma tradução portuguesa a que não resisti. E que dizer? Lembro-me de que o Homem de Fraque mo sintetizava como um escritor de ficção científica que parte da banalidade quotidiana americana dos anos sessenta, sem naves supersónicas nem sabres de luz. (Não que eu tenha algo contra as naves supersónicas ou os sabres de luz). E esta síntese tão simples e tão precisa esgota um terço do que eu poderia dizer acerca de Vonnegut.

Mas a questão é que esta geração extraordinária de autores norte-americanos dos anos cinquenta/sessenta (em que incluo, obviamente, o meu adorado Salinger), que, de um ou de outro modo, sofreu o horror da Segunda Grande Guerra, partilha uma linguagem capaz de exprimir um ponto de vista comum: ou a de um jovem desamparado (Salinger) ou a de um cidadão vulgar (Vonnegut); e esse tom simples, coloquial, despido de retórica - se ignorarmos o facto de que reconstituir essa linguagem é, em si, um empreendimento retórico de grande fôlego - provoca um efeito inesperado, atordoador, propiciador de uma empatia indefinida. E, durante o tempo da leitura, cremos que estamos ou diante de um jovem, com a sua indignação e os seus palavrões, ou diante de um sujeito um pouco cretino, cujas confissões nunca entendemos até que ponto são um puro exercício de delírio, ou a revelação autêntica do contacto com seres extra-terrestres.

Juro-vos: a escrita de Vonnegut é absolutamente deliciosa, no seu despojamento próprio de um rascunho, que evita descrições ou desenvolvimentos exaustivos. Em breves apontamentos, relata-nos a história de Billy Pilgrim, o qual, durante a guerra, foi feito prisioneiro pelos alemães (e assiste à destruição de Dresden, como aconteceu com Vonnegut himself), e mais tarde, de regresso a Ilium, ao emprego, à noiva, casando, tendo filhos, sofrendo um acidente e, por fim, a morte da mulher, «intoxicada por monóxido de carbono. E é assim», acaba revelando que, desde há algum tempo, mantinha contacto com os habitantes do planeta Tralfamadore.

Que pensar da loucura de Billy Pilgrim? Que pensar desta visão absolutamente nova do tempo e da morte, que os tralfamadorianos lhe haviam ensinado? Que pensar da sua volubilidade ao tempo, que lhe permite viajar, subtrair-se ao presente, reinscrever-se num fluxo contínuo onde nada verdadeiramente começa e coisa alguma tem de facto fim?

Nuno Júdice afirmava categoricamente, num livro cujo título suspeito é ABC da Crítica [como se fosse possível resumir todo o trabalho de crítica literária às regras estanques de uma espécie de manual], que nunca se deve falar acerca do livro antes de o ter lido na íntegra. Parece óbvio. Curiosamente, é uma regra que não sigo: começo a escrever no ponto exacto da leitura em que sinto que o livro me tocou e inspira, como se houvesse uma espécie de urgência e qualquer adiamento fosse impossível e criminoso. Que eu depois mude de ideia - aconteceu-me -, que tenha acrescentos importantes, que tenha falado de mais, ou de menos, nada disso é grave. Em última análise, uma crítica pode ser totalmente rescrita a seguir - mas parece-me importante iniciá-la no ponto certo de ebulição. Não concluí a leitura de Matadouro Cinco. Mas já sei o que vale - e não me apetece esperar mais para vo-lo dizer...
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