sábado, 6 de agosto de 2011

SHIRLEY JACKSON: THE LOTTERY


Sempre fui um inveterado bebedor de contos. Tchekhov é de uma precisão extraordinária e os norte-americanos são muitíssimo bons. Em geral, as autoras norte-americanas são de uma subtileza e de uma perícia inigualáveis.

A minha amiga Cristina não gosta de contos. [Como não gosta de música brasileira nem de Woody Allen: estranhos direitos estes, que, no entanto, lhe assistem]. Argumenta que, num conto, quando o leitor começa a sentir-se próximo das personagens e mergulhado no ambiente da história, a história termina.

Posso compreendê-la. Mas, nos melhores contos, não falta nada. Entristecemos por que tenham acabado - mas não ficamos tristes, também, quando um extenso e magnífico romance, que nos acolheu durante semanas, um dia chega ao fim [ainda que tenha demorada mil e vinte páginas]? Um conto é como um poema: uma construção singular, com os ingredientes indispensáveis - e nem um para além desses - de modo a realizar-se no seu tempo certo. Uma página a mais seria a morte do artista. É tal brevidade que lhe confere o que lhe é necessário: a intensidade, a vertigem, o clímax.

Já perceberam que recebi, finalmente, depois de uma espera longa, The Lottery and Other Stories, de Shirley Jackson. Seguro com certa emoção o volume de papel agradável, uma capa sépia, com a fotografia muito simples de uma mulher sentada, agarrada à sua mala, numa pose de resignação e ansiedade que traduz o espírito dos contos de S. J.

«The Lottery» é o último, e foi por esse que principiei: 12 páginas, nem uma mais, onde se descreve uma aldeia aparentemente feliz, e a surpreendente (mesmo para quem a esperava, como eu) transição da visível bonomia para a bárbara realidade - a desocultação da normalidade, revelando o puro horror que a sustenta: horror domesticado, tornado uma parte "normal" da vida e, não obstante, absolutamente terrível. Não imaginam o escândalo que este conto provocou entre as pacíficas mentalidades burguesas, nos anos 40. Hoje, é um indiscutível clássico, um ícone que, segundo um comentador, deveio parte integrante do «inconsciente colectivo norte-americano».

Mas todos os outros contos são feitos com a mesma originalidade e o mesmo desaforo, como se, de facto, Shirley Jackson estivesse muito empenhada na sua própria voz, sem a menor cedência. É um comentário da Newsweek: «Na sua Arte, como na sua vida, Shirley Jackson foi uma absoluta original. Escutava a sua própria voz, aceitava os seus próprios conselhos, isolando-se de todas as correntes intelectuais e literárias... Ela foi unique». A. M. Homes, na introdução, encontra-lhe uma perturbadora familiaridade com Carver, outra minha descoberta recente. E sim, entendo essa ligação, a mesma banalidade realista sob que se oculta algum segredo pavoroso, a mesma visão das famílias americanas dos subúrbios do Sul, as mulheres tristes, as dependências em relação a alguém, em relação ao álcool, as frustrações; mas, naturalmente, em Jackson o horror atinge proporções dantescas, há um negrume diferente sob as pessoas e nas profundidades das vilas.

São 26 contos. Leram bem, 26!Li dois, li a introdução. Não vale a pena telefonarem-me nos próximos dias...

PS: a capa publicada neste post não é, como perceberam, a capa do meu livro. Ou melhor: não a da edição que recebi. Mas é uma deliciosa capa de The Lottery, de «época», a que não resisti...

2 comentários:

sonia disse...

Zé, será que você já leu um livro de contos do W. Somerset Maugham, As 3 mulheres de Antibes? Procure nesse livro um conto chamado O Comedor de Lodão. É impressionante! Tenho a 1a. edição em livro de bolso. Adoro esse escritor!
Abraço

josépacheco disse...

Não li, Sonia. Mas vou à caça, porque tenho uma especial predilecção por Somerset Maugham. E pelos contos dele.