terça-feira, 12 de julho de 2011

JOSEPH HELLER: CATCH 22


O primeiro capítulo tem um tom quase surrealista que não captamos, imediatamente, em toda a sua extensão de estranheza. O protagonista é um piloto de bombardeiro, que, no tempo da intervenção norte-americana na 2ª Guerra Mundial, se encontra hospitalizado; dedica-se a um acto de censura: cabe-lhe a tarefa de reler cartas que os soldados pretendem enviar a familiares, suprimindo informações secretas, delicadas ou - presumo - reveladoras de qualquer desânimo; mas Yossarian faz da sua tarefa um passatempo irónico e divertido: elimina aleatoriamente, e por fases, ora, primeiramente [imaginemos] todas as referências afectivas, ora, mais tarde, digamos,todos os verbos, terminando por, numa derradeira fase, só deixar visíveis as conectivas, riscando tudo o mais.

Embora este modo de agir pareça pouco normal, somos tentados a encará-lo como uma brincadeira num tempo e num espaço alterados, sufocantes, dolorosos: na continuação da leitura, apercebemo-nos de que o comportamento de Yossarian não é um desvio "humorístico" para suportar (ou, de algum modo, aligeirar) uma situação e um dia-a-dia deprimentes. É mais do que isso: é uma maneira de estar comum a todas aquelas personagens, uma visão partilhada por todo o exército, numa espécie de delírio colectivo. Os diálogos são alucinados, cheios de equívocos, como se ninguém se ouvisse senão a si mesmo. As obsessões, as manias, as manhas. Não há revolta nem terror, porque o ambiente de guerra se esgota nesta rede de relações burocraticamente hierarquizadas, que obedecem a normas que são, elas próprias, em certa medida absurdas.

Catch 22 (em português: o «artigo 22») remete, precisamente, para essa perspectiva. Kafka ou Buzzati não andam longe - e a visão de qualquer um deles poderia ser uma chave na leitura do romance de Heller: um artigo cujo cumprimento leva ao paradoxo, ao círculo vicioso, ao beco sem saída; cujo cumprimento se contradiz a si mesmo: dou parte de louco se quero fugir à guerra, mas dar parte de louco torna-se, rapidamente, motivo para ser conduzido à guerra. [Na verdade, porque a alegação de insanidade pelo próprio é a prova indiscutível da sua perfeitíssima sanidade mental]. Tudo isto à luz, ou à sombra, do vago «artigo». Não espanta que tenha sido um romance adorado (por uns) e odiado (porventura por muitos). Não espanta que nem sempre penetremos nas mentes daquelas personagens, que poderão estar a ser irónicas, ou inocentes, ou loucas. Não espanta que nos divirta. Nem espanta que a diversão às vezes magoe...

2 comentários:

Zé alberto disse...

Gostei muito desta análise.

abraço.

Eduardo Andrade disse...

Ao contrário do Major Major a malta dos blogues, recebe, mesmo quando não está.