sábado, 16 de julho de 2011

DOMINGOS MONTEIRO: O MAL E O BEM


Estávamos seis ou sete pessoas à volta de uma mesa, na esplanada de um café minúsculo. Falávamos de livros: não unicamente, mas em dado ponto, falámos disso. E, a propósito, sentado à minha esquerda, J. S., um moçambicano cínico como eu, introduziu o nome de Domingos Monteiro: «É absolutamente extraordinário. E pouco se ouve sobre ele. Tenho um livro em casa, antigo, uma edição de uma tal Sociedade Cultural de Expansão, com um conto, O Bem e o Mal, que é realmente magnífico: este gajo não tem nada que ver com aqueles intelectuais que prescindem da história para se masturbarem com as palavras; é uma narrativa que não conseguimos parar de ler...»

Eu tenho um sapo íntimo. Parece adormecido, mas sob a sua aparente sonolência há uma atenção pronta a disparar: se passa um insecto como as palavras de J. S., a língua do meu sapo projecta-se vertiginosamente e caça-o de imediato. Pedi ao meu amigo que me emprestasse o livro. Trouxe-mo, abri-o, li o primeiro conto - uma novela, no fundo - quase de um fôlego.

Duplamente este texto nos interpela do ponto de vista filosófico. Em primeiro lugar porque, como o título sugere, é do bem e do mal que se trata, na sua relação com o estrito cumprimento da lei: não é o "legalista", porventura, na utilização da lei para seu próprio e único benefício, um homem pior do que aquele a quem a vocação para o bem conduz sistematicamente a transgredir? Mas o segundo aspecto é talvez ainda mais interessante: escrito sob a forma de um diálogo (o que nada tem de original), ou seja, de uma narração que um homem faz a outro, O Bem e o Mal funciona como uma ilustração da dialéctica do Senhor e do Escravo, em que, como argumentou Hegel, o Senhor se torna escravo do Escravo; «escravo do Escravo», posto que depende inteiramente do olhar dele e do seu reconhecimento para ser quem é, para se confirmar perante a sua própria consciência: de certa forma, ao comprometer o seu empregado, obrigando-o a assinar a confissão de um desvio, a única coisa que o patrão deseja é ter alguém que lhe possa ouvir a confissão, sem que o venha a denunciar. Alguém!? Mas - perguntaríamos - por que não, precisamente, um padre? Porque este empregado é, secretamente, o homem capaz de o julgar, a consciência pura e bondosa, um idealista, e não uma «instituição» que lhe perdoaria em nome de Deus.

Porque, de resto, o senhor Rodrigues não quer, de Porfírio, qualquer perdão. Desafia-o, humilha-o, ridiculariza-o: não há dúvidas de quem é ali o Senhor e de quem é o Escravo. E no entanto, há, na relação do senhor Rodrigues com o mal que a sua prática moralmente foi, e com as consequências derradeiras do mal, uma culpa e uma dor que só perante a consciência justa de Porfírio se pode assumir na sua própria verdade, na sua essência de caminho livremente escolhido.

Há outros dois contos, «A Menina Cega» (que já li e é também interessantíssimo) e «O Encontro» (que nem sequer principiei), mas, como dizia J. S., «O Mal e o Bem» excede as medidas, solicitando um leitor dedicado e um pouco ansioso, que possa merecê-lo efectivamente.

6 comentários:

Teresa disse...

Gosto muito de Domingos Monteiro, foi-me apresentado há muitos anos por um grande amigo que já morreu.
Tenho dois ou três livros de contos dele (ia jurar que três).

A ver se digitalizo para lhe enviar, dependendo da legibilidade com que ficarem. Quer?

P.S. Esta sua caixa de comentários é um desespero. É a terceira vez que tento publicar e nada.

josépacheco disse...

Claro que sim, quero muito. Lamento imenso que a minha caixa seja tão terrível - será que o seu post sobre nunca mais comentar em caixas irritantes também se dirigia a mim? Teresa, deixe-me confessar: a minha caixa deve-se unicamente ao facto de eu perceber muito pouco de informática. Tentarei, junto de amigos, melhorá-la. (joseantoniopacheco7@hotmail.com, para o envio dos textos...)

josépacheco disse...

A Teresa dispara mais rapidamente do que a sombra. Comentou um texto que eu mal tinha acabado de escrever e estava ainda revendo e emendando. Não terá sido precisamente no seu blogue que eu vi uma referência à Menina Cega, de Domingos Monteiro?

Teresa disse...

Vamos por partes: não foi no meu blogue, nunca falei de Domingos Monteiro, até por não conhecer mais ninguém que o conheça. :)

Quanto à caixa de comentários, o meu post referia-se principalmente a este tipo, do qual toda a gente se queixa, se bem que o modelo que abre em nova página também seja muito irritante quando se quer voltar ao blogue.

Para alterar é muito simples.

Vai às definições do blogue. Em cima tem vários separadores. Abre o terceiro, Definições. Surgem-lhe no topo diversas opções: Básico, Publicação, Formatação, Comentários, etc.

Vai a este último, comentários, e é logo o terceiro ponto: Colocação do Formulário de Comentários. Selecciona o segundo, "Janela de pop-up".

Desce ao fundo da página e carrega em "Guardar Definições". Voilà! :)

josépacheco disse...

Feito. Merci!

josépacheco disse...

«escrito sob a forma de diálogo», pus eu. relendo, retiro o que escrevi. não é, obviamente, de um diálogo que se trata, porque o interlocutor, que está pressuposto, nunca fala, não retorque. trata-se, portanto, de um monólogo, embora possamos até adivinhar as objecções do outro, quando o único falante (para nós, leitores) diz «como diz? acha então que...?», etc...