segunda-feira, 28 de março de 2011

RAYMOND CARVER: CATEDRAL

1.

Em literatura, há lugar para tudo. Diria que um escritor tem o dever de exigir, de si próprio, e sem cedências, a qualidade máxima de que seja capaz. [Soa demasiado pomposo, reconheço, mas opto por deixar ficar o que entendo como imperativo categórico do escritor]. Quanto à forma ou ao género como essa qualidade se realiza, são praticamente infinitos; e cada um de nós,

leitores, pode fazer as suas escolhas, porque dificilmente os apreciaríamos todos: Eça ou Camilo? Tordo ou Peixoto? [O exemplo é imperfeito: gosto de Eça e de Camilo, de Tordo e de Peixoto: mas trata-se de entender o conceito...]


2.

Pessoalmente, sou sensível ao trabalho da linguagem. É o que me faz gozar tanto a poesia como a prosa. Mas há autores cujo texto procura, pelo contrário, despojar-se de toda a retórica: o que escrevem é despido, seco, mas não necessariamente menos artístico.

3.

Do meu ponto de vista, produzir um conto ou um romance que mereçam ser lidos apesar da depuração a que os submetam é, talvez, até mais difícil. Raymond Carver constrói contos, como diz o próprio, «sobre lugares comuns» e, pior (dir-se-ia), «usando lugares comuns». Percebo-lhe a afirmação: os seus contos são, de algum modo, estudos do quotidiano; os ingredientes são os nossos objectos, por exemplo esta caneta com que agora escrevo nas costas do enunciado de um teste de filosofia. É o sentido em que Tchekhov dizia: Olho para um cinzeiro e, se quiser, tenho pronto, pouco tempo depois, um conto chamado O Cinzeiro.

4.

A perspicácia de Carver é preciosa: as coisas simples, as casas comuns («lugares» comuns), o frigorífico, o sofá, a televisão tornam-se-nos perfeitamente nítidos. E as personagens? Casais, ou vendedoras de vitaminas, ou desempregados, ou alcoólicos em desesperada luta contra o seu vício. Na descrição dos gestos, ou dos hábitos e tiques - no fundo, lugares comuns comportamentais -, há sempre algo que provoca um reconhecimento imediato: eu fiz ou faria precisamente isto; ou alguém que conheço, ou alguém que costumo ver. E os diálogos são imperdíveis. [Facto: os americanos fizeram-se mestres absolutos na expressão de uma oralidade corriqueira - falas feitas de interrupções, de repetições, banalidades].

5.

E, todavia, nada disto constitui toda a verdade: porque, sob essa aparência de familiaridade, como se no mero circuito do lugar comum, cada conto de Carver é a descoberta do incomum do lugar comum. Sem grandiloquência, numa escrita extremamente simples, Raymond Carver encontra, em cada caso, o elemento quase surrealista no quotidiano banal. O pavão; o negro acabado de chegar do Vietname, com a orelha de um vietcongue guardada, como troféu, num estojo; o homem que se apaixonou por uma limpa-chaminés e se tornou limpa-chaminés. O efeito é, de facto, de uma originalidade ímpar. Nem Tchekhov nem Hemingway - e em Carver há, evidentemente, qualquer coisa dos dois - são tão eficazes nesta espécie de enumeração do trivial, para, sob ele, acertar em sentimentos tão próximos, tão nossos, tão compreensíveis.

6.

O fim de cada um dos contos é, em geral, um anticlímax: uma poça de água que sobrou sobre o soalho, umas quantas penas de ave ou uma despedida. E até isso é novo - eu julgava que, em regra, um conto devia dirigir toda a sua energia para um final surpreendente. Em Carver, não senhor: e isso é absolutamente surpreendente.

sábado, 26 de março de 2011

DANIEL FARIA: POESIA



Descubro Daniel Faria, no seu Poesia, que reúne seis livros (Uma Cidade com Muralha, Oxálida, A Casa dos Ceifeiros, Explicação das Árvores e de Outros Animais, Homens que são como Lugares mal Situados e Dos Líquidos), e ainda diversos inéditos que o poeta havia oferecido a amigos seus, e aqui se recuperam; descobrindo-o, percebo, subitamente, e por antítese, o que eu próprio teria querido dizer, num post anterior, acerca da maioria dos novíssimos da poesia portuguesa. Achava que, por alguma razão, e como se respirassem um certo ar do tempo, asfixiantemente comum, todos os poemas «de hoje» se parecem de um modo irremediável... Em Daniel Faria, que morreu tão jovem, aos 28 anos, cada poema contém um segredo absolutamente indispensável, que não se confunde com esse «ar do tempo». Cada poema seu é um segredo indispensável. Quando leio, por oposição a Daniel Faria, num livro de um outro autor - aliás vagamente na moda -, numa livraria, este poema feito de um único verso dedicado a Barcelona, «A cidade incendiada pelo olhar desprevenido», sinto que nem as palavras, nem a experiência de absoluta surpresa e encantamento que elas visariam transmitir, têm seja o que for que nos faça parar e ansiar por reler. Há, aqui, qualquer coisa de trivial, uma espécie de mediocridade que, mais do que provocar uma revelação ao espírito, se limita a evocar a imagem de um turista, em calções e de máquina fotográfica, exclamando: «Ena!»
Leio, agora, estes versos de Daniel Faria: «O pássaro amanhece/ e o seu bico não fere o seu canto»: são palavras que não esperamos e se acertam num sentido frágil, que tem de ser protegido, ao mesmo tempo de uma beleza e de um leveza extremas, como um brilho inseguro, tremente, que poderia estar ou não estar onde nos pareceu vislumbrá-lo. E se fosse uma ilusão? Um mero reflexo? E se, ao olhar de novo, percebêssemos que não estava lá?
Neste «pássaro que amanhece» (inversamente à tal metáfora do incêndio, que já lemos tantas vezes quantas vezes vimos, no cinema, um polícia tendo de decidir se deve cortar o fio amarelo ou o fio vermelho, para desmontar uma bomba), neste «pássaro que amanhece» há algo que tem de ser dito - embora pudesse nunca vir a ser dito, se o poeta não atingisse a expressão e a imagem exactas de uma verdade tão simples. Eis um outro poema muito bonito e simples (embora, de facto, complexo, se atentarmos na construção) de Daniel Faria: Houvesse um sinal a conduzir-nos/ E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores/ A incomparável paciência de procurar o alto/ A verde bondade de permanecer/ E orientar os pássaros. Porque, como dizia O'Neill, em poesia não há senão esta fronteira: os poemas que têm absolutamente de se escrever, e os poemas que poderiam ser escritos ou não...

sexta-feira, 25 de março de 2011

TEMA: EM LUTA COMIGO MESMO (E UM LIVRO DE RAYMOND CARVER AO FUNDO)


O título do post de Catarina era: Depois de Carver e de Salinger. Repito o conteúdo: «Bem-vinda, Flannery, ao meu coração».

Salinger, conheço bem, e de há muito, graças ao meu primo que sempre teve, junto a mim, a generosa missão de me apontar o que vale a pena. Devo-lhe, em literatura, precisamente Salinger, Giuseppi de Lampedusa, Waugh, Bulgakov, Naipaul, Donna Tartt; (já para não falar das conversas sobre outros tantos eleitos comuns). E Flannery, conhecia, também. Quem me pôs na sua peugada? Alguém terá sido: li um artigo? uma recensão? Diacho, não me lembro. Mas sei que foi amor ao primeiro conto...

E Carver, esse Raymond Carver do título da Catarina?

Estou na pista. Farejo, farejo. Já hoje tive nas mãos Catedral. Manuseei-o, sopesei-o, folheei-o. Estive quase, mesmo quase para o trazer. O preço reteve-me, neste triste tempo de crise. Ainda fui a uma «grande superfície» ver se o achava mais em conta (ao que chega um viciado em livros...); e tornei à livraria, com as mãos tremendo. Mas senti uma pontada de culpa sobre o mamilo direito, e acabei por sair, cabisbaixo, sem o livro.

Foi uma vitória sobre mim mesmo? Sobre o meu instinto bibliófago? Não creio. É uma questão de tempo.

Carver é o próximo. Anda no ar. Sinto-lhe o cheiro. Farejo, farejo...




segunda-feira, 21 de março de 2011

FLANNERY O'CONNOR: UM BOM HOMEM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR


No blogue da Trama, Catarina escreve um post que cito rápida e integralmente: «Bem-vinda, Flannery, ao meu coração!» Era, talvez, o mote que me faltava.

Flannery O'Connor é uma autora que atinge a perfeição na escrita dos contos. É o seu género de eleição e, sem dúvida, aquele em que usa mais brilhantemente o que tem de certeiro, para empregar a palavra de alguém a propósito de Flannery, como escritora. [Gostei muito menos, por exemplo, do único romance que conheço da sua autoria, Sangue Sábio]. Toca-nos, em primeiro lugar, pela profundidade de personagens aparentemente simples e sem filosofia. Campónios do Sul da América do Norte, pregadores cristãos, famílias simples, avós que participaram na guerra da sessessão, criados negros filhos de escravos, proprietários de plantações de algodão, mães envelhecidas de jovens estudantes empertigados. Não há clichés, mas referências, facilmente reconhecíveis, desse sul feito de famílias numerosas, amas gordas, de lenço à cabeça, garotos descalços, cachimbadas ao alpendre e bebedeiras: de Tom Sawyer e Huckleberry Finn a E Tudo o Vento Levou ou Por Favor, Não Matem a Cotovia, é um mundo que se nos tornou familar na literatura e no cinema.


Em segundo lugar, pela complexidade das relações já antigas, que descobrimos a partir somente de um certo presente, ignorantes dos segredos que só ao longo da leitura se nos revelarão; pela amargura que ecoa em todos os seus contos, raramente felizes; ou pela sensibilidade e pelo amor que se desprende destas suas pessoas rústicas e ignorantes. Um amor que reflecte o amor dela própria pelas personagens, mesmo pelas mais duras e implacáveis, as menos amáveis.


Lembro-me de ter sido feito imediatamente prisioneiro pelo primeiro livro de contos que li de Flannery, Um Bom Homem é Difícil de Encontrar, e da alegria com que descobri, meses - ou anos - mais tarde, que fora traduzido um outro, Tudo o que Ascende Deve Convergir (não sei se é este o título em português de: Everything That Rises Must Converge). A frase simples de Catarina fez-me desejar o regresso às histórias breves desta autora. E reencontro o livro com o mesmo prazer do primeiro encontro.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O LANÇAMENTO

Amanhã é o lançamento de Nada Mais e o Ciúme. O livro que escrevi. Será na Livraria Barata, como sabem. Estou nervoso e confiante. Nervoso pelo que me diz respeito, confiante no que toca aos meus amigos, que estarão presentes. Nervoso pelo que me diz respeito, confiante na apresentação que, de novo, a Elisa Costa Pinto realizará: o grande trunfo. Nervoso pelo que me diz respeito, confiante na capa do livro, que o transformou num objecto que apetece tomar nas mãos, folhear, olhar atentamente.

quarta-feira, 16 de março de 2011

JOÃO TORDO: AS TRÊS VIDAS


Em 2008, João Tordo publicou um livro chamado As Três Vidas. Suponho que foi essa a sua obra vencedora do Prémio José Saramago. [«Suponho» é uma maneira de falar: na verdade, sei que foi.] Só agora o leio e, de todos os João Tordo que conheço, anteriores ou posteriores, considero As Três Vidas o melhor. (Mas também gostei muito de Hotel Memória, o primeiro que li...)

A escrita é despojada e eficaz. Noutros romances, como por exemplo O Bom Inverno, esse despojamento parece, por alguma razão, um défice: como se o autor tentasse um trabalho sobre a linguagem, que se nota num ou noutro momentos, mas não alcança definitiva e continuamente. Em As Três Vidas não se sente, todavia, falta de poesia ou de uma linguagem mais luminosa: percebe-se que se trata simplesmente de contar uma história. O romance vale pela articulação dessa história, muito realista e credível embora com um eco sinistro, uma sombra de possibilidades terríficas, que nos fazem sentir a proximidade de Orwell e de Kafka - aliás, e não por acaso, dois autores que constam dos livros recomendados por uma das personagens à outra, seu empregado e vagamente discípulo.

Tétricas vias, portanto. Um dos problemas deste romance, de resto, é talvez precisamente certo receio de enfrentar e desenvolver até às últimas consequências algumas das mais tenebrosas (mas também promissoras) possibilidades sugeridas: o incesto - por exemplo - rapidamente se resolve como um equívoco que ocultava, afinal, a mais angélica das situações. Aquela espécie de corcunda de Notre Dame nada tem de terrível, a não ser, quando muito, o mau cheiro: é um pobre de Cristo.

João Tordo, nesta sua estreia literária (e é uma estreia na entrada pela porta grande, ainda que possa não ser o seu primeiro livro), joga brilhantemente com as tensões e o suspense: a leitura não tem, pois, pausas nem tempos mortos; a ideia cativa desde a primeira linha; os diálogos são de uma credibilidade quase perfeita. Aborrece que haja sempre alguém a acender um cigarro, ou a perguntar, a propósito do que o seu interlocutor afirmara, simplesmente: «E?» (implicitamente: «E então?» ou «Que se segue daí?»)? Pois aborrece, mas são pormenores. Talvez até deliberados e com um determinado carácter simbólico.

domingo, 13 de março de 2011

ADÍLIA LOPES: OBRA


É uma coisa de que me orgulho muito, devo confessar:

Na Biblioteca da escola em que lecciono, numa sessão de uma série a que chamei Ouvisões, convidei os alunos a ligar e a expor a poesia de Adília Lopes (que poucos conheciam e é ainda desconhecedíssima, se exceptuamos os consumidores oriundos de uma certa elite cultural), a pintura de Paula Rego (que todos reconhecem e se tornou indiscutível) e a música dos Deolinda, que ultimamente está na moda, merecidamente, aliás, mas, à época, dava os primeiros passos, ou os primeiros acordes - de maneira que ainda constituíam novidade.


O ponto comum deste cruzamento (poesia, pintura e música) era o grotesco: um certo trabalho sobre o grotesco; e, claro, o facto de esse trabalho artístico ser, nos três casos, realizado por mulheres. [Também nos Deolinda, porque embora haja, na banda, músicos do sexo masculino, não só a vocalista, Ana Bacalhau, é uma mulher, como a imagem ou o heterónimo para que o grupo remete, a Deolinda que lhe dá nome, seria uma jovem típica portuguesa, à janela, entre gatos...]


Voltemos a Adília. A sua poesia possuía-me completamente. Lera excertos, lera alguns livros breves, um já com muitos anos (talvez o seu primeiro, Um Jogo Bastante Perigoso...) e vinha de resdecobri-la, e completá-la na gigantesca Obra, que reúne poemas seus de várias proveniências.


Os poemas de Adília têm uma forma quase crua de enunciar nomes e espaços. Quando nos fala das paredes «em obras» da faculdade, ou do escritório de um senhor que não me lembro quem seja, ou de um conferencista, ou de um escritor ou de um professor, nós sabemos que está a nomear objectos reais do seu círculo geográfico, académico, familiar, de amizades. E a «oficina do grotesco» (para referir o nome de um grupo dramático de boa memória) principia precisamente aí, nesse enunciar o real para o denunciar em inesperadas deformidades. Um desejo insatisfeito, uma omnipresente frustração perante a monstruosidade de que resulta o choque entre o desejado prazer e a penosa realidade tornam os sonhos em pesadelos risíveis: objecto da vingança perpetrada pelo escárnio e pelo maldizer.


A poesia de Adília é, por vezes, brutal: com os meus alunos, procedeu-se a uma selecção, próxima de censura, que evitava os poemas de linguagem mais explícita e escabrosa. Mas é um canto que caminha sempre entre uma sensibilidade triste, uma ternura talvez demasiado frágil e quase inocente, que regressa continuamente, e o riso sarcástico e endemoninhado: caminha na proximidade dos contos e mitos infantis (a carochinha, a sereia, o príncipe), mas para deles extrair uma assustadora perversidade.


É uma poesia imperdível: como raros autores na novíssima poesia portuguesa, Adília não é igual a ninguém mais. Inventou-se, forjou-se, ri-se. À nossa custa, sem dúvida. À sua custa, certamente. E corajosamente.

sábado, 12 de março de 2011

O DON TRANQUILO ***

«- Liólia, o meu amigo Lisstnítzki!
« - Ah! Lisstnítzki! Muito prazer. O meu marido falou-me de si...
«Estava ofegante. O seu olhar sorridente, baço de felicidade, deslizou rapidamente por Lisstnítzki. Partiram juntos. A mão peluda de Gortchákov, com os dedos sujos, cheios de espigas, e de unhas negras, apertava a cintura virginal da mulher. Enquanto caminhava, Lisstnítzki ia olhando de soslaio aquela mão, aspirando o cheiro a verbena e àquele corpo feminino aquecido pelo sol, e sentia-se profundamente infeliz, como uma criança injustamente ferida. Olhava a ponta rosada da orelha pequena a espreitar por baixo de uma madeixa de cabelos de ouro avermelhado, a pele acetinada da face tão perto dos seus olhos, depois o olhar dele deslizou como um lagarto para o decote do vestido e viu um pequeno seio de uma brancura leitosa, com um mamilo castanho. De tempos a tempos, a mulher voltava para ele os olhos claros de reflexos azulados, e o seu olhar era acariciador, amigável, porém uma dor fina e irritante magoava Lisstnítzki quando esses mesmos olhos, ao fixarem-se no rosto negro de Gortchákov, brilhavam de uma maneira inteiramente diversa...»

[o segundo volume foi, talvez, o interregno necessário para situar historicamente o romance no quadro da revolução bolchevique; este, o terceiro, é, de novo, muito belo e muito sensual, como podem avaliar pela descrição do injusto e descabido ciúme de Lisstnítzki]

sexta-feira, 11 de março de 2011

MAURICE OU A HOMOSSEXUALIDADE SEGUNDO E.M. FORSTER


Pensei usar, como título deste post, «O Que é Precisamente um Homossexual?»; parecia-me uma pergunta provocatória. Mas reconsiderei: em que consistia a provocação senão, vendo bem, no facto de se reduzir o homossexual a um objecto que se disseca? Desagradou-me, desisti do título.

E, no entanto, o que é um homossexual? Não falo de um gay: o conceito de gay é diferente do de homossexual; diz respeito a uma representação cultural da homossexualidade, que implica a assunção orgulhosa e festiva da mesma, como uma certa maneira de estar na vida. É-se gay como se é hippy ou freak: trata-se de uma escolha de tribu, de indumentária, de arte, de estilo.

Trato a questão da homossexualidade porque ela me irrompe a propósito de um livro de E.M. Forster. Maurice, completado em 1914 - mas publicado somente em 1971, não certamente por acaso - é um desses livros que se lêem numa vertigem, como à beira de um precipício de que não conseguimos afastar-nos. Precisava de ir para a cama, mas continuava a dizer-me «Só mais um capítulo» e, meia hora mais tarde «Agora é que é o último»: todavia estamos presos, sabem como é?, até ao momento em que, por fim, a cabeça cai sobre as páginas.

A homossexualidade descrita por Forster é típica de jovens de colégios ingleses, que se vão descobrindo a si próprios, ao seu corpo e ao seu desejo, no círculo de uma camaradagem com os colegas, com os quais partilham um espaço e, portanto, uma intimidade. Está longe de ser uma homossexualidade que se exponha. Pelo contrário: os professores vigiam, as mães, quando os recebem em casa, nas férias, empurram-lhes, para cima, primas ou vizinhas casadoiras. Em muitos casos, é uma condição que a vida se encarregará de dissolver: haverá os que efectivamente se casam e têm filhos: a homossexualidade teria sido, para eles, uma experiência suscitada unicamente pela proximidade erótica de outros rapazes e pela ausência de mulheres? Despiram-na sem problemas, quando tiveram de vestir outra roupa? Ou recalcaram-na? Ou reprimem-na no dia-a-dia, desejando e sonhando ainda com aquilo de que, porém, abdicaram?

Sei, pois, o que é um homossexual à luz deste romance, Maurice. É um homem - não um homem num corpo errado, não um homem que deveria ter nascido mulher, mas um homem. E o que caracteriza este tipo de homem, digamos assim, é uma certa forma de percepcionar a realidade. Porque o desejo está sempre, precisamente, ligado a uma certa forma de percepcionar: desejar uma mulher é percepcionar as mulheres (e uma em particular) de um dado modo, conferindo-lhe um sentido que o corpo masculino não possui para esse olhar; pelo contrário, desejar um homem é compreender de uma dada forma o corpo do homem, um movimento, um ritmo, uma força singulares.

Neste livro, acontece a um jovem (Clive) deixar de ser homossexual porque, bruscamente, devido a contingências diversas, a sua percepção se modifica. Clive não tinha procurado mudar, não quereria sequer mudar, uma vez que tal mudança ia trazer sofrimento a Maurice, que se apaixonara por ele e por quem estivera apaixonado. Mas nada podia fazer: a sua percepção mudara e, portanto, desaparecia, instantaneamente, a atracção pelo objecto de desejo, que amara enquanto (e só enquanto) o percepcionava de outra maneira.

Não é um tratado, não é um ensaio, não é uma abordagem científica da homossexualidade. Está completamente errado, ou poderia estar certo; tem - ou não - que ver com a própria experiência do autor. Não sei, não me interessa. É uma tese artística, é um motor ficcional. Constrói um romance que nos entra no sangue. É quanto basta.

quinta-feira, 10 de março de 2011

NADA MAIS E O CIÚME: UMA RECENSÃO

Uma recensão feita a Nada Mais e o Ciúme, que me enche de orgulho, precisamente aqui.

quarta-feira, 9 de março de 2011

MIKHAIL CHOLOKHOV: O DON TRANQUILO **



Na (dir-se-ia que descoordenada mas, de facto, dotada de uma lógica própria) minha leitura de diversos livros quase simultaneamente, venho de fechar o segundo volume de o Don Tranquilo.

O Don em causa, para evitar equívocos, não é uma pessoa, mas o rio don, aliás só periódica e ilusoriamente tranquilo. Que acontece do primeiro volume para o segundo? Tudo muda. Sobre as mesmas paisagens, na proximidade visível e audível do omnipresente rio, tendo como personagem colectiva os cossacos e os seus cânticos dolentes e sarcásticos, tudo muda porque os ventos da história transformam a geografia humana. E o que no volume anterior era tão-só pressentido, as rodas de uma revolução iniciando clandestinamente a sua marcha - os propagandistas perseguidos pela polícia do czar, as reuniões secretas com camponeses absorvendo a nova verdade... -, abate-se, neste segundo volume, em toda a sua força. Vivemos, agora, os tempos da revolução bolchevique. O exército conhece fissuras e discussões internas. As personagens, algumas das quais já nossas conhecidas do primeiro livro, vão-se situando, inseguras ou firmes nas suas ideias, perante uma nova realidade, perante novas expectativas e outras promessas.

Ler estes dois volumes tem, precisamente, isso de extraordinário: mostrar-nos o labor da história e a mudança das pessoas, determinada pelo tempo. Sabemos já que, ao longo dos quatro livros que constituem o Don Tranquilo, o rio será precisamente metáfora de um tempo enganador, pacífico e tremendo, carregando em si inimizades e amores, revolução e serenidade, guerra e paz. (E não uso inadvertidamente o título de Tolstoi, consciente, agora, do modo como Cholokhov procura, no seu romance, seguir a visão imensa do mestre).

Este volume é o mais claramente político. Para quem, como eu, tinha lido o anterior há não muito tempo, falta, aqui, o esteio dramático que tanto me interessara naquele: falta, antes de mais, Aksínia. A personagem que tinha tocado o primeiro livro com uma força e uma grandeza atordoadoras, profundamente femininas, tem, agora, uma breve aparição. E falta amor: falta a pulsação de uma história de amor impossível, precisamente a de Aksínia. É só já quase nas últimas páginas, que venho de ler, que um amor capaz de mover montanhas se assume na relação trágica de Buntchuk e Ana. Mas lembrar-nos-emos de Ana como de Aksínia? Sonharemos com ela? Desejá-la-emos com a mesma dolorosa intensidade dos sonhos irrealizáveis? Compreende-la-emos tão completamente, na sua semelhança e na sua diferença em relação a nós mesmos?

O que é fascinante neste volume diz respeito mais à psicologia de massas do que à de indivíduos; mais à História do que à história (ou a estória); mais ao testemunho da revolução bolchevique do que ao testemunho da paixão erótica; muito mais à consciência de personalidades políticas (e aos dilemas éticos que as escolhas políticas implicam) do que à consciência de pessoas existindo, como se a existência fosse um terreno de relações e sentimentos prévio a todo o compromisso ideológico. Este volume é um excelente ensaio de História e das ideias políticas na Rússia, mas é um insuficiente romance. Coisa que o primeiro, seguramente não era.

terça-feira, 8 de março de 2011

UMA SENSAÇÃO DESAGRADÁVEL APÓS TER LIDO UM POEMA DE HOJE

Um ligeiro problema com a poesia portuguesa de agora é que todos os poemas, de todos os jovens poetas, se parecem imenso. Mesmo os melhores poemas têm um incómodo travo a déjà-vu. E talvez aconteça algo semelhante em todas as épocas, talvez haja, nesta fisionomia familiar e comum, algo de espírito do tempo, a que se não consiga fugir.

Deste ponto de vista, Gonçalo M. Tavares - que não é, em primeiro lugar, um poeta - surge como uma total surpresa. E não deixa de ser curioso que um dos meios de que se serve para formar o seu próprio singularíssimo rosto poético, consiste em ir beber a fontes ainda mais antigas do que as fontes em que quase todos hoje bebem.

HENRY JAMES: INFIDELIDADES

Caro Bruno Bravo:

A propósito da sua pergunta, uma leitora atenta (e conhecedora, por supuesto) afirma-me que a obra de Henry James, que o Bruno procura, se chama, em português, Infidelidades. Existem - diz-mo ela, a mim que o ignorava - o livro traduzido e até um filme.

Um abraço.

segunda-feira, 7 de março de 2011

WITOLD GOMBROWICZ: COSMOS


Interrompo Correcções. Porquê? Confesso: porque este livro de grande extensão [512 páginas na tradução portuguesa] está a ser consumido tão rapidamente por mim que, aproximando-me já do fim, desejo deter-me, reter-me. [Pressinto uma conotação sexual no que escrevo]. Não quero concluí-lo, preciso de me demorar nele: desejaria gastar meses, senão anos, em torno desta obra-prima. Ridículo, talvez? Sim senhor, mas quem disse que eu não era ridículo?

E, portanto, retomo o livrinho que Paulina me ofereceu: Cosmos, de Witold Gombrowicz.

De Gombrowicz, o autor polaco cuja obra tantos equívocos gerou, lera - também oferecido, suponho - um conjunto de cadernos filosóficos, misto de rascunho, preparação de um programa de ensino e, ao mesmo tempo, preparação para a morte. Com os dias contados, Gombrowicz agarrara-se, com um derradeiro entusiasmo, a essas digressões, muitas vezes resumidas a uns quantos tópicos, sobre Hegel, Marx e os existencialistas.

Cosmos é um livro inadjectivável. Foi um dos livros proibidos na Polónia durante o período estalinista. Como o próprio Gombrowicz dirá mais tarde, em entrevista, «Considerado como escritor de vanguarda, pensavam que eu era um homem de esquerda. Ora eu sou um escritor dialéctico, fora de quaisquer categorias, ao mesmo tempo conservador e revolucionário».

Percebo o que há de absolutamente inovador em Cosmos. A escrita, antes de mais, como se, ao longo do texto, em cada frase o autor criasse um presente fechado sobre si, e a frase a seguir tivesse de tornar a nascer do nada, desligada do momento anterior: e como se, por outro lado, a fala do narrador, a sua escrita, estivesse permanentemente desequilibrada pela interferência do pensar. Ligações imprevisíveis, associações ilógicas, ou feitas de acordo com uma lógica que não é a da "comunicação" e sim a de um monólogo subjectivo.

Mas mais do que isso, Cosmos é um romance metafísico: uma investigação, segundo o autor, sobre as «origens da realidade». Esta investigação situa-nos perante a realidade como caos: tudo é infamiliar, estranho, perturbador; e nessa imensa e entranhada estranheza, certos aspectos devêm sinais a partir dos quais se possa constituir - ou buscar - uma ordem. Sinais, também eles, estranhos e cruéis ou, pelo contrário, insignificantes, como «um pássaro enforcado, um cajado dependurado, um gato suspenso pelo pescoço, um homem também na mesma posição» e ainda «manchas, pegadas, setas, bocas que se justapõem, cerimónias eróticas»: indicadores de uma qualquer misteriosa direcção, de uma secreta comunicação ou de um imprevisível sentido da realidade.

Lemo-lo numa exaltação perturbada. E percebemos que, qualquer que fosse a visão subjacente à nossa cultura literária, esta está terrivelmente incompleta enquanto não contiver Gombrowicz: precursor de tantos percursos, demolidor de muitos outros, trabalhando intensamente uma mescla de ficção, poesia e filosofia, de que se não sai incólume.

domingo, 6 de março de 2011

UMA CONVERSA NO INTERIOR DE CORRECÇÕES

Jonathan Franzen, soube eu entretanto, é ostracizado por uma certa corrente de consumidores norte-americanos, que lhe não perdoa o facto de se ter recusado a ser entrevistado num programa da Oprah. Acusam-no de quê? De elitismo. De snobismo. Não de timidez, por exemplo, ou, mais provavelmente ainda, de querer evitar equívocos e demarcar as águas, não deixando que o confundissem com um autor de «literatura light». Mas de elitismo. E snobismo.

Venho de ler o fim do terceiro capítulo do seu Correcções, que me parece bem arrojado. Lembra-me Ulisses [que, by the way, ainda não foi desta que consegui concluir].

Enid e Alfred, personagens já nossas conhecidas [cf. post anterior] estão num cruzeiro. Uma tarde, encontram-se, no convés, com dois casais nórdicos. Há uma rivalidade latente - mas cada vez mais manifesta - entre os suecos e os dinamarqueses. Na conversa, tudo se choca de um modo atordoador: alguém expõe insistentemente a sua teoria acerca do efeito de estufa, enquanto Enid fala de acções, um dos maridos nórdicos alfineta o outro marido nórdico, uma mulher fala de deficiência visual (olhos preguiçosos), uma diferente mulher corrige-a (não é possível haver «olhos preguiçosos», mas «olho preguiçoso», atendendo que se trata de um dos olhos compensar a preguiça do outro), de vestidos, de leituras; há vozes exteriores ao grupo, de que vamos captando, descontinuamente, algumas frases, até que surge o que é interpretado como um insulto, a que um dos casais reage, deixando o grupo. Está lá tudo, mais a cor, o movimento levemente desagradável do navio, as memórias pessoais que não cessam de interferir e de que o leitor é também testemunha.

«Está lá tudo», escrevi, mas como, precisamente, se junta tudo isto? Num estranhíssimo mosaico onde nada se ajusta, em que há falas sobrepostas, ou que se interrompem, ou paralelas, em que nunca se faz silêncio mas tudo é fragmentário. Nenhuma linha agregadora, antes várias minúsculas linhas quebradas num quase doloroso entrecruzamento. O efeito é perturbador. A estranheza provoca-nos, ao mesmo tempo que nos fascina, absolutamente irresistível. É uma leitura trabalhosa de que, todavia, não podemos separar-nos um instante.

Mas, lá está: preconceito à parte, não sei se o bando histérico que constitui o público habitual de Oprah conseguiria apreciar, de facto, este modo real e irreal de se nos expor um mundo em que nada progride, eppur si muove!