quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

THOMAS MANN: A MONTANHA MÁGICA


Se, por um horroroso - e possível - minar do espírito, me esquecesse de todas as referências concretas dos livros que li ao longo da minha vida, os títulos, os espaços descritos, as personagens que amei como amigas ou que amei como inimigas, os nomes, a linguagem, suponho que, mesmo assim, me sobraria na memória algo como os núcleos de quase todos os romances, ou de muitos deles: um núcleo sem nada gravitando em redor (e mesmo sem nada no interior), despido, despojado, vago, incapaz de ser nomeado: a essência primeira e última.

Sei isso acerca de Proust. E sei isso acerca de A Montanha Mágica. Por essa razão, aliás, me abalanço a escrever sobre este último, apesar de o não ter relido recentemente e de, penso, não o ter sequer em minha casa. Mas nada me é mais fácil e grato do que recuperar o núcleo de um dos romances em cuja lentidão tanto gostei de me demorar. Porque o movimento interior de Hans Castorp, o protagonista - que em tantos aspectos se assemelha ao homem sem qualidades, do livro de Musil - é de uma extraordinária complexidade: ele reflecte, ele observa as pessoas, ironiza, capta o mundo que se transforma: é o seu mundo que se transforma porque, acompanhando um amigo a um sanatório nas montanhas, Castorp isola-se nesse micro-universo. A doença, que o próprio acabará por contrair, tornar-se-á, pois, centro e substância do seu universo - a doença, aliás, numa clínica, num hospital, num quarto, é sempre o centro e a substância do universo do doente: um universo de monstros físicos (bactérias, gérmens, vírus) e monstros metafísicos: fantasmas, medos, desesperos; e de rotinas: tratamentos, consultas.

Até que ponto, nesse universo contaminado - e com menor durabilidade - se encontra ainda energia com que se criem amor, esperança, política?

Recordo, neste livro, para além de um amor condenado (ou seja: contaminado...), ou de uma narração sumptuosa das refeições numa sala comum, de intensos diálogos, em passeios por entre montanhas, em que Castorp e Settembrini esgrimem as suas posições de vida (política e filosoficamente): e essas perspectivas, com o mal e a morte a circusncrevê-las, experimentam na turberculose a metáfora de uma ideia omnipresente, a da corrupção.

A magia contida no título é a mais tremenda ironia, tratando-se da montanha onde as pessoas mergulham para tratar os seus pulmões. Mas, se há ironias que perturbam, são aquelas em que é difícil reconhecermos os limites da ironia e da literalidade. Porque uma magia subsiste, sem dúvida, na montanha: uma energia, uma esperança no amor e na amizade - uma percepção aguda da morte.

2 comentários:

Unknown disse...

Ando há muito tempo para ler este livro. Não sei se será este ano... Espero que sim.

Zé alberto disse...

Muito interessante, como sempre, o passeio que o José aqui dá pelo jardim de uma obra tão relevante na literatura europeia do sec. XX.
Sempre aprecio a forma como se debruça sobre as flores (aspectos de uma obra) para lhes acariciar as pétalas, como fazendo notar, ao leitor "reparem na riqueza e no requinte deste detalhe!".
Muito cuidadas e apreciaveis as suas reflexões.

abraço!