quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

RUI KNOPFLI: O ESCRIBA ACOCORADO



Há uns anos, pediram-me que escrevesse um artigo sobre Rui Knopfli. Assim o fiz. Considerava-me, aliás, imodestamente, a pessoa indicada para a tarefa: eu era moçambicano como ele (embora de uma outra geração: lembro-me de lhe ser apresentado numa festa, eu garoto, ele já poeta consagrado) e habitávamos ambos, intelectualmente, uma mesma cultura africana, em relação à qual, ao mesmo tempo, nos sentíamos «outsiders». Escrevi o artigo com grande prazer, carregando-o do que me pareciam observações ousadas e pertinentes, eticamente corajosas e politicamente incorrectas. Fi-lo num computador fixo - que, entretanto, se avariou. Não consegui salvar nenhum dos documentos que o computador albergava. Mandei-o à merda (ao computador, claro. E esta palavra, inabitual neste blogue, não visa senão mostrar a raiva e a indignação que senti). O artigo foi à vida. Nunca mais o reconstituí.

Estou agora com O Escriba Acocorado nas mãos. É um livro com quinze poemas magníficos, em cujos versos nos ecoam Homero, Camões e Villon, ou ecoam heróis e mitos ocidentais, muito mais do que os poetas africanos ou de que paisagens de grandes savanas e selvas luxuriosas. Como escreve Eugénio Lisboa, no seu posfácio, numa «África primitiva e hirsuta, a que, no fundo, não sente pertencer (onde se não insere), ele, o poeta "desenraizado", fica abusivamente de fora»; a observação de E. Lisboa vem a propósito de um certo poema em que Rui knopfli menciona uma flor, que despe sucessivamente das características esperadas (não é uma rosa multicolor, nem uma flor barrocamente complicada, não tem cheiro nem cor...), para concluir: «É uma flor de plástico». Ou seja, é esta ironia final que, num certo sentido, o faz, simbolicamente, acolher uma natureza falsa, ao invés da pujança da natureza que nos habituámos a ligar a uma ideia de África.
A ironia é, na poesia de Knopfli, a expressão de um desencanto, como perante um crepúsculo de crenças e de ideais. A beleza intensa e aguda, e dolorosa, dessa poesia, é precisamente a do desenraizamento: a de uma liberdade que não tem um meio a que se ajustar. Quando muito, um universo que se funda em memórias de um passado colonial, e em referências que remetem para uma europa mítica, de capitais esplendorosas (mas decadentes, ou esvaziadas), nunca visitadas pelo poeta, só vaga e falsamente tentadoras ainda.

As memórias são evidentes, até em alguns títulos de obras suas, como Mangas Verdes com Sal ou O Monhé das Cobras. São memórias trespassadas, elas próprias, de uma ironia que utiliza certas ideossincrasias do colono português (como um certo gosto pela fruta «exótica», de que se apropriava, ou o desprezo contido na expressão «monhé», com que eram referidos os indianos em Moçambique), sem, contudo, se identificar com essas ideossincrasias. Sem fazer delas o seu «discurso ideológico», mas um discurso que se recorda distanciadamente. Por outro lado, as referências europeias fundam esta poesia que se escreve em linguagem erudita, sem concessões, em busca de uma dicção serena e triste, aristocrática e descrente, desenrainzada, mas tendo sabido aprender de universos diferentes; descomprometida, mas de uma sensibilidade subtil, de uma atenção ao mundo em transformação que é, já de si, uma forma superior de compromisso.

Há um ritmo em que a mudança de estrofe põe pausas, mas não pontos definitivos; um ritmo que se prolonga como, se a partir do momento em que principiássemos a ler a poesia de Rui Knopfli, ela nos arrastasse consigo sem estações, exigindo um pouco mais sempre, numa espécie de movimento contínuo. Respiramos, mas prosseguimos: é uma cadência musical que em todas as músicas bebe mas a nenhuma se sujeita, nem ideológica nem literariamente: avessa a escolas, correntes ou «ismos», a poesia de Knopfli brilha numa solidão e numa errância que não aportam, não se quebram, não se fixam. E, aí, mesmo a desilusão ou a descrença são singulares formas de beleza.

2 comentários:

sonia disse...

Entendo perfeitamente sua ira ao perceber que havia perdido o arquivo com o material sobre Rui Knopfli. Aconteceu comigo após ter feito uma tradução de 300 páginas, que eu tinha que entregar no dia seguinte!

josépacheco disse...

Iiiih! E não conseguiu recuperar nada? Perdeu a tradução de vez?!