sábado, 2 de outubro de 2010

UM COMENTÁRIO BELO, MUITO BELO

Está sob o texto que escrevi acerca de Mrs. Dalloway.
É um comentário de uma leitora (presumo, porque escreve no feminino), que não assina senão «Eu», e que não sei quem seja.

Mas é tão bonito, está tão bem escrito, toca-me tanto, que não resisto a destacá-lo. Sei que não se importará. Seja quem for.

«Estava sentada na cadeira de verga da varanda, aquela que chia como um pássaro desasado. Naquele momento límpido, remendava letras num caderno antigo. O Sol que vinha de dentro era meigo e trazia Primavera aos cíclames escarlates dos vasos que os meus pés descalços contornavam. Lá dentro também havia pessoas cinzentas e animais ferozes, mas para esses não encontrei linhas de remendar.
Estava, portanto, nesta minha oficina quando a vi passar. Ela ia ligeira pela rua abaixo, com um vento sorrateiro na bainha da saia rodada, como um arpão em mar alto. Estacou o passo num letreiro néon onde se lia: "Donna Tartt". Entrou, evaporou-se no algures.
No dia seguinte também lá entrei. Os meus olhos despertos quiseram saber mais. O papel de parede lembrava-me a biblioteca do Teotónio, aquele que um dia me fugiu para o lado invés do mundo. Por causa dele e dela (a "Donna Tartt", como passei a chamar-lhe), visito regularmente esta sala, onde as molduras aprimoradas guardam histórias sem remendos.
Dizem que o dono trabalha nas obras, escritas. Sim, claro».

«Eu»

5 comentários:

Anónimo disse...

- Isabel, Isabel! – o eco de vozes ansiosas desde o átrio.
No vão da janela, entre as florzinhas coloridas das cortinas e o ronronar do gato persa, ela permanecia como uma árvore a arquear ao vento. Um enxame de gotas de chuva ziguezagueava na vidraça, enquanto o dedo indicador da mão escrevinhadora seguia a lição do Outono. Dentro daquelas paredes da cor das gemas diluídas em leite, Schubert amparava-lhe a ventania.
- Isabel, vens ou não? – as vozes a acicatarem o momento.
Aproximou lentamente o rosto, as pálpebras a roçagarem o sonho e a boca desperta pelo último gole de chá com sabor a menta. Soltou o gancho madrepérola do cabelo, moldou a écharpe aos ombros e desceu a escadaria, em imbricadas claves de sol.
- Já vou! – clamou por fim.
Na vidraça embaciada as florzinhas avivaram as letras e a cauda do gato pontuou a palavra: OBRIGADA!

Eu, Isabel

josépacheco disse...

Isabel. Tenho, por fim, um nome para nomear a autora desse universo que me toca: um universo de referências palpáveis (a cadeira que chia; o papel de parede da biblioteca de alguém que perdeu; as florinhas das cortinas; o gato persa...), reveladas em palavras que significam mais do que aquilo que mostram: relacionam essas referências palpáveis com ideias, desejos, segredos, sentimentos misteriosos, fluidos, riquíssimos.
Porém, agora que sei o nome desta autora de uma escrita que não é de cá (visita-nos, mas não é de cá, ainda que às vezes nos pareça tão próxima), que sei realmente dela? Onde posso encontrar a sua escrita, que me exalta e arrepia? Em algum livro publicado? Em um blogue? Onde, como?

Anónimo disse...

Venho de ver o rio. Está tudo tão sereno por lá. Trago o olhar submerso e nas mãos o cheiro intenso a eucalipto. Andei pela tremura das margens, entre tufos de ervas e pedrinhas amendoadas. Cingi o livro ao peito. No céu estendais acinzentados de gaivotas em debandada, fizeram-me recear. Nunca pensei que voar fosse tão embriagador. Enganei-me. Olhei para trás e o livro estatelou-se no chão, numa página desmarcada.

acidadeeocampo[ponto]blogs[ponto]sapo[ponto]pt – lugar adormecido, de palavras estagnadas.

Obrigada, sempre.

Eu, Isabel

josépacheco disse...

Venho de a visitar. No blogue. «Adormecido», «estagnado» (palavras suas), só no sentido em que há já 3 meses a Isabel não escreve lá. Mas, nas suas palavras, nada está adormecido ou estagnado. Ainda me encontro sob o efeito de si, dessas palavras, do seu modo de ver e de sentir tudo.«Estendais acinzentadas de gaivotas em debandada». Eu é que agradeço.

Anónimo disse...

José, tenho o olhar menino de emoção. Assim é tão difícil… desaguarem palavras nos dedos.
Sabe que estarei lá, com o xaile estendido na eira, aguardando um céu estrelado.

Eu, Isabel