quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIRGINIA WOOLF: MRS. DALLOWAY


Tanto Ulisses como Mrs. Dalloway são romances dos anos 20. O primeiro foi sendo publicado, numa revista periódica, a partir de 1918, e editado, em livro, em 1922; e o segundo, em 1925. Por que razão me parece importante esta comparação? Porque em ambos se trata do mesmo complicado e, a limite, impossível tipo de busca: a de um monólogo interior, misto de sensações (de que o sujeito iria tomando fragmentariamente consciência), observações, ideias não muito explícitas, surpreendentemente interligadas, como se a propósito de minúsculos e velozes quase-nada.

Em Mrs. Dalloway (o livro de Virginia Woolf que prefiro, ao invés de As Ondas, por exemplo, estrangeiro e longínquo), Clarissa Dalloway é-nos apresentada como uma mulher solitária e infeliz. A narradora não coincide rigorosamente com ela: é uma voz, mas essa voz, produtora da narração, não tem autonomia, não é ninguém. Vai-se colando à ebulição interior da protagonista. Contudo, acompanhando esse movimento ilógico, saltitante, sem eixo nem fio internos, reproduz, de fora, a sua mobilidade distraída, desconexa, perturbadora.

Há algo mais interessante do que isso: como em certas danças de rua, em que um rapaz se move durante um certo tempo para, ao tocar na mão de um comparsa, o fazer começar, por sua vez, a dançar, como se lhe houvesse transmitido uma corrente de energia, também esta narradora vai mudando de subjectividade: persegue Mrs. Dalloway até que, no percurso, esta se cruza com Septimus e sua jovem esposa, ocupando então, sucessivamente, estas novas subjectividades; regressa, depois, a Clarissa Dalloway, que, de algum modo, a "transmite" a Peter Walsh: um antigo amigo que a visita, muitos anos após, nunca tendo sido capaz de resolver a sua relação com ela e nunca, sequer, porventura, a tendo compreendido.

O efeito é inovador, é impressionante. Virginia Woolf domina magistralmente a técnica, que inventou, para provocar esse efeito. Noutras obras, a autora perde-se, desconcentra-se. Confunde o leitor. Nesta, porém, nunca divaga na sua dispersão; sem os pôr directamente face a face, contrapõe diferentes sistemas de questões e de problemas, diferentes sensibilidades, diferentes dilemas, diferentes valores e vivências. As personagens poderão nem saber umas das outros, seguindo cursos perfeitamente paralelos. Ou, quando se encontram, e interagem, são incapazes de suspeitar todas as consequências, para o outro, do que lhe disseram ou lhe confessaram.

E quem é Mrs. Dalloway? Que sabe, realmente, ela de si? Ou que quer de si? Que quer da sua vida? O que a mantém activa? O que lhe evita o suicídio? Que sentido tem a existência desta mulher de 52 anos (idade que refiro, porque é precisamente a minha) que poderá ter falhado todas as escolhas críticas e decisivas, mas não aceita errar ou negligenciar a preparação de uma grandiosa festa, derradeira máscara do seu vazio?

1 comentário:

Anónimo disse...

Estava sentada na cadeira de verga da varanda, aquela que chia como um pássaro desasado. Naquele momento límpido, remendava letras num caderno antigo. O Sol que vinha de dentro era meigo e trazia Primavera aos cíclames escarlates dos vasos que os meus pés descalços contornavam. Lá dentro também havia pessoas cinzentas e animais ferozes, mas para esses não encontrei linhas de remendar.
Estava, portanto, nesta minha oficina quando a vi passar. Ela ia ligeira pela rua abaixo, com um vento sorrateiro na bainha da saia rodada, como um arpão em mar alto. Estacou o passo num letreiro néon onde se lia: "Donna Tartt". Entrou, evaporou-se no algures.
No dia seguinte também lá entrei. Os meus olhos despertos quiseram saber mais. O papel de parede lembrava-me a biblioteca do Teotónio, aquele que um dia me fugiu para o lado invés do mundo. Por causa dele e dela (a "Donna Tartt", como passei a chamar-lhe), visito regularmente esta sala, onde as molduras aprimoradas guardam histórias sem remendos.
Dizem que o dono trabalha nas obras, escritas. Sim, claro.

Eu