sexta-feira, 16 de julho de 2010

RECOMEÇANDO ULISSES, DE JAMES JOYCE



Mas, é claro, falar tão abundantemente de Ulisses como sendo o meu calcanhar-de-Aquiles, dói um bocado. Um tipo tem o seu orgulho. E um tipo com a mania de que é um leitor com talento só até certo ponto está preparado para admitir que um livro lhe resista assim.
Sei que não sou único. Chega-me aos ouvidos a existência, até, de um Clube de Pessoas que Odeiam Ulisses de James Joyce. Ser-me-ia mais fácil aderir a um tal clube do que regressar à monumental obra. Mas não é digno. Envergonhar-me-ia sempre desta fraqueza.

Tenho Ulisses em casa. Todavia, parte do mal reside no Ulisses que tenho ali na estante. Cansei-me tanto de lidar com ele, de regressar ao combate e ser sucessivamente vencido que, agora, quando me aproximo, sinto uma leve náusea. É tudo aquilo: a cor, a textura, o tamanho, a mancha laranja de humidade nas páginas, a própria tradução. Vem-me um fastio à alma, uma tristeza, uma frustração antecipada. Solto um suspiro. E reponho-o na sua prateleira.

Esta tentativa que faço agora precisa, portanto, de algumas modificações. Trago, da biblioteca, um volume de uma edição diferente. É uma mudança essencial. A capa continua a não ser lá muito bonita, mas esta tradução agrada-me. É a de João Palma-Ferreira.

Principio por ler a Nota do Tradutor. Depois, adentro a obra. E, curiosamente, ela deixa-se penetrar. À medida que sigo as linhas, vou pensando na possibilidade de fazer um diário da minha leitura de Ulisses. Não vale a pena, evidentemente. Descansem, não porei em prática a peregrina ideia.

Compenetro-me da escrita de Joyce, de uma tal correcção que nos apetece escrever assim. Não preciso, para exemplificar, senão das primeiras linhas:

«Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha. O roupão amarelo, solto, sustinha-o por detrás, gentilmente, a brisa suave da manhã.»

As palavras parecem compor quadros a partir de um mundo de pequenas coisas, pormenores quotidianos, oferecendo-no-los numa linguagem perturbadoramente poética para uma descrição tão irrisória. Mas, a partir desta tarefa de cantar o trivial e talvez até o mesquinho, há personagens que se vão desenhando nas suas manias, suas ideossincrasias, seus diálogos.
E os diálogos, misturando, uma vez mais, os interesses quotidianos e uma especulação complexa, têm, frequentemente, um tom surrealista, como se as ligações entre os temas fossem sempre feitas de uma forma aleatória, abrindo-se, a cada instante, uma inesperada porta de último instante...

Mas esse é o projecto de Joyce, como sabemos: estas ligações correspondem a um monólogo interior, que nunca é o fio lógico que os romances procuram habitualmente representar - como se o "pensar", enquanto exercício subjectivo, pudesse alguma vez ser a construção lógica e sintáctica de que nos convenceram. Na verdade, é mais esta estranha e imprevisível liberdade de que Joyce se aproxima; e que vai contaminando as páginas, nas associações incorrectas, nos desvios improváveis.

Não canto vitória. Leio Ulisses lenta e paralelamente a outros, que vou devorando com mais gosto. Estou no terceiro capítulo. Confesso que o segundo me foi particularmente interessante: uma aula de História de Stephen Dedalus, perante alunos sempre a um passo de exorbitar do respeito que lhe devem, seguida da conversa com o velho Director, Mr. Deasy, que vem para lhe pagar, lhe dar conselhos, para o provocar.

E então? Vamos andando. Já era tempo.

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