sábado, 17 de julho de 2010

O CAPÍTULO 3 DE ULISSES

É fascinante, de facto. (Ainda o terceiro capítulo).

1. Palavras inventadas, palavras longamente compostas. Expressões em latim, em alemão, pedaços inteiros de diálogos em francês que evoca de uma sua passagem por Paris. «Sua» de Dedalus, que parece ser, mas só até certo ponto, o próprio Joyce.

2. Pergunto-me como pode alguém ter traduzido uma tal obra. Terá sido a empresa de uma vida, certamente. Que Joyce haja escrito este romance demorado e complexo é já espantoso. Mas que um homem se tenha aventurado a traduzi-lo? Que profundo conhecimento do romance, que paixão, que domínio da língua portuguesa e da língua inglesa, que cultura, quanto tempo!

3. Será que, também, «ler» Ulisses deverá constituir a empresa de uma vida?

4. Nunca tinha lido integralmente a obra. Contudo, aqui, ali, reconheço excertos, às vezes bem longos, por onde já passara. A sensação de déjà-lu nunca me abandona. Porquê? Porque, nunca a tendo conquistado, a fui vagamente folheando? Não sei. Não me lembro.

5. Ou será porque, como no conto de Borges, também o Ulisses existe como ideia, prévia ao texto escrito?

6. O passeio pela praia, onde depara com apanhadores de ameijoas e descreve o teatro do seu labor, é notável. Bem como o modo como, em sua mente, de um momento para o outro, os vê como se fossem mercadores ou ladrões árabes, das mil e uma noites, ricamente paramentados, carregando despojos...

7. «- Farrapo! Fora daí, rafeiro!
«O grito trouxe-o de volta furtivamente para o dono e um brusco pontapé sem bota atirou-o ileso através de uma língua de areia, encolhido no voo. Escapuliu-se comprometido, num rodeio. Não me vê. Correu ao longo da beira do molhe, andou ao acaso, cheirou uma rocha e por sob uma pata traseira, erguida, mijou rapidamente numa rocha não cheirada. Os prazeres simples dos pobres. Depois as patas traseiras espalharam areia em todas as direcções: depois as patas dianteiras rasparam e cavaram. Algumas coisas enterrara ali a avó dele. Fossou na areia, esparrinhando, escavando e parou para escutar o ar, voltou a atirar areia com a fúria das garras, a cessar quase a seguir, um leopardo, uma pantera, engendrado em adultério, abutreando os mortos.»

8. Por outro lado, um exemplo irresistível de uma passagem sobre um monólogo interior, na sua sintaxe solta e desrespeitadora: «Vem. Tenho sede. O céu está a enevoar-se. Não há nuvens negras em parte nenhuma, não é verdade? Trovoada. Ele cai, todo luz, orgulhoso relâmpago do intelecto. Lúcifer, dico qui nescit occasum. Não o meu chapéu de concha e bastão e as suas minhas sandálias sapatas. Onde? Para as terras do poente. O poente a si próprio se encontra.»

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