segunda-feira, 26 de julho de 2010

MATAR UMA COTOVIA: RASCUNHOS DE LEITURA



1
O engenho criativo de Harper Lee é muito claro: começa por nos expor um mistério verdadeiramente temível para aquelas crianças (o mistério de Boo Radley, preso há muitos anos em casa dos pais e do irmão, vivo ainda, segundo certas versões, morto já, de acordo com outras, que se mantém ao longo da obra toda e encontrará o seu lugar máximo no desfecho da narrativa); mas, depois, parece afastar-se desse núcleo; quase como se o esquecesse: vai-se ocupando de outros interesses e de outras brincadeiras dos miúdos; com o tempo de aulas, mais os equívocos, cómicos, à volta da chegada, à terra, de uma nova professora e suas tentativas ingénuas para aplicar teorias "modernas" àquela realidade tão diferente do que ela esperara encontrar. São episódios que quase nos fazem perder de vista o perigo; como os porquinhos brincando, na serra, enquanto o Lobo não vem. De modo que é sempre de repente, inesperadamente, que as crianças tornam a tropeçar na casa, no mistério - que nunca dali se movera, e sempre estivera esperando por elas...

2
Por outro lado, defendo, cada vez mais, que o território do romance é o do meramente sugerido; o daquilo que o leitor vai adivinhando, à medida que "interpreta" o texto (por que se comporta, realmente, esta personagem assim?, qual o seu segredo: terá inveja, estaria apaixonado por aquele outro, lutava contra a memória do pai...?). Ao contrário de uma obra de filosofia ou psicologia, em que se exige que o autor nos apresente, sem segundos sentidos, a sua teoria, um romance prende-se com a arte da subtileza. E, assim, ao ler, em Por Favor Não Matem a Cotovia, a passagem em que Scout surpreende, à noite, uma conversa entre Atticus (seu pai) e o tio Jack, que conclui o capítulo do seguinte modo:

«Vá lá perceber-se porque é que as pessoas sensatas se transformam completamente em doidos varridos quando surge alguma coisa que envolve um negro. É algo que eu ainda não entendi... Só espero que o Jem e a Scout saibam procurar as respostas em mim e não no que se diz pela cidade. Espero que confiem suficientemente em mim... Jean Louise?
«Em pânico, senti que me tinham descoberto a careca. Meti a cabeça por entre a porta, mostrando-me.
«- Pai?
«- Vai para a cama.
«Corri para o meu quarto e meti-me na cama. [...] Mas nunca consegui descobrir como é que o Atticus sabia que eu estava à escuta e só muitos anos depois é que percebi que o seu objectivo, naquela noite, era mesmo que eu ouvisse cada uma das suas palavras.»,

sinto-me inevitavelmente frustrado. Não sentem, também, esta exposição como uma oportunidade perdida? Uma chance, não explorada, de subtileza?

3
Precisava realmente Harper Lee de nos dizer tudo? Havia necessidade de nos explicitar que só muitos anos mais tarde descobriria que o seu pai "sabia" que ela estava à escuta? Não poderia ter semeado indícios? Deixar que isso fosse uma interpretação possível (porventura não a única possível)?

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