domingo, 25 de julho de 2010

HARPER LEE: POR FAVOR NÃO MATEM A COTOVIA


É um livro de 1960. O seu título é um daqueles que trazemos connosco, ainda que nunca tenhamos lido a obra propriamente dita. É até um título que nos parece vagamente ridículo em Português, no seu tom melodramático: Por Favor Não Matem a Cotovia, com a mesma expressividade excessiva que encontramos em Os Cavalos Também se Abatem - que, tanto quanto me recordo, também não li.

Depois, com os anos, vamos descobrindo uma informação ou outra: que Harper Lee, autora de To Kill a Mockingbird (um nome mais terrível e menos histérico no original), grande amiga de Truman Capote, publicou este livro, ganhou com ele o Pulitzer e não tornou a escrever.

Empurrado, por uma amiga, a comprá-lo, começo a lê-lo com alguma curiosidade e aquela estranha sensação de estar a realizar uma tarefa que já deveria ter cumprido antes, há muitos anos, talvez na minha adolescência. Algures no ponto do passado onde a descoberta desse título se fez e nos marcaria para sempre.

Logo no primeiro capítulo, começam a desenhar-se as linhas típicas do Sul norte-americano, com o seu espaço tão específico, a história que pulsa na genealogia daquelas famílias, com as suas criadas e criados negros e a sua linguagem peculiar que, aliás, Harper Lee procura reproduzir nos diálogos. Quem leu, ainda jovem, Gone With the Wind, os contos de Flanery O'Conner ou Tobacco Road, de Erskine Caldwell (que, aliás, nunca li e não conheço senão através da voz de minha mãe) reconhece imediatamente esta geografia e esta psicologia, constituídas, no fundo de si, pela Bíblia e pela escravatura.

Por Favor Não Matem a Cotovia conta uma história: e não será certamente ocioso sublinhá-lo quando, mais do que tudo, mais do que a linguagem ou a criatividade, é a simples história que interessa a Harper Lee. A linguagem das personagens, repito, não é senão a reprodução da oralidade particular do Sul. Tudo tem que ver, portanto, com a melhor maneira, a mais credível, de contar essa história: e ela fá-lo em capítulos eficazes, ao longo dos quais deixa que nos apercebamos de um mistério, ou de uma situação tenebrosa, ou de um fascinante horror e, através de uma perspectiva infantil - que é, em suma, a perspectiva que a narradora assume, como se regressasse à visão da criança que era, ao tempo em que ocorreram os factos a que se reporta), vai elaborando uma narração muito tensa, muito dura, muito forte, muito bela, muito triste, por vezes cómica.

As personagens parecem simples: é a simplicidade tremenda de espíritos formados na Palavra de Deus e no preconceito, num maniqueísmo sem doçura nem expectativa: de algum modo, essa sobriedade de traços é sempre um quadro que torna mais intensos os dilemas éticos. A dimensão trágica radica nesta ideia de que ser autenticamente justo significa opor-se à evidência comum, à indiscutível mentalidade de uma comunidade inteira. E é nisto que a autora é tão convincente.

1 comentário:

Numa de Letra disse...

Um livro extraordinário...

http://numadeletra.com/13274.html

Cumprimentos,

Numa de Letra