domingo, 20 de junho de 2010

DEUS E JOSÉ SARAMAGO


Saramago foi, malgré-lui, o mais cristão dos escritores portugueses. Não tanto por causa do seu tão difundido "humanismo", mas pelo facto de ter erigido o Deus cristão, a Bíblia e o próprio Cristo a adversários arquetípicos e tema obsessivamente único. Os seus últimos anos foram vividos nesse desvario de boneco com o mecanismo sonoro quebrado: Não há Deus, não há Deus, não há Deus!; essa fúria mostrava-nos uma revolta similar à de Lúcifer ou de Caim, que é sempre, em última instância, a de um filho contra o pai.

Saramago foi um escritor de extraordinário talento: fez mais pela língua portuguesa do que todos os acordos ortográficos, todos os Institutos Camões no movimento de se implantarem pelo mundo fora, ou as tentativas de intercâmbio promovidas pelo governo. Fez mais pela literatura portuguesa contemporânea (num país em que a grande referência literária se resume a uns quantos jornalistas que resolveram escrever romances) do que a sede devoradora da Editora Leya mais os seus prémios literários.

A personagem embirrante e maledicente em que se instalou, na qual se tornava difícil separar o génio do mau génio, ou os cursos de banalidade que prodigalizava nas entrevistas que ia concedendo, deixavam-me sempre algo perplexo: É isto Saramago? É isto o nosso Nobel? Este conjunto de chavões e de frases feitas, esta raiva irreflectida?!

Nunca fiz inteiramente as pazes com Saramago; mas, lendo alguns dos seus melhores livros, o memorial, o evangelho, Ricardo Reis, as intermitências, a viagem, talvez Caim, estou seguro da sua absolvição. Se Deus, a existir, for um leitor de bom gosto (e teria de ser, é claro), Saramago está no céu, Sousa Lara nunca para lá irá.

Reconciliei-me? Até ao ponto, somente, em que a morte tudo e todos reconcilia. Mas apetecia-me principiar a relar o Memorial do Convento.

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