sábado, 8 de maio de 2010

DOSTOIEVSKI: CRIME E CASTIGO


Gostaria de poder dizer que me surgiu esta pergunta na adolescência, implicando isso que eu teria lido, muito novo, Dostoievski (o que, por coincidência, é verdade), mas, sobretudo, que era então já capaz de intuições precoces. Sucede que a tive adulto. E, nesse caso, está longe de ser precoce. Todavia, assumo a infantilidade do meu espanto...

Quando me compenetrava de que, bem vistas as coisas, Dostoievski é um autor do século XIX, ou seja, a bem dizer, de ontem, sentia, com um arrepio de estranheza, que a literatura, até ao século XIX, ainda não começara verdadeiramente. Apesar de Homero, apesar de Virgílio, apesar de Dante ou Shakespeare. Pode parecer estúpido. Mas tenho o mesmo tipo de arrepio quando penso em como Proust é recente. Caramba. Vieram tão tarde, de certa forma, alguns daqueles que deram à História da Literatura uma dimensão maior, um sentido absoluto, um fundamento iluminador. A sua verdade! (Sim, eu sei: não existirá "a" verdade da literatura, mas qualquer coisa como uma totalidade de sentido, com um contorno que se não completaria sem Proust,Dostoievski - e só não falo de contemporâneos, porque o tempo decidirá...)

Outra revelação: não possuo, entre os meus livros, Crime e Castigo. Não me perguntem porquê, sou peculiar.

No entanto, li três vezes este romance. Lembro-me tão bem da primeira delas. A da descoberta. A de me estar embrenhando num continente selvagem, onde nada me era familiar e tudo me exigia novos instrumentos.
Como diria E. Prado Coelho (naquelas suas frases que, aliás, tanto me irritavam), por uma vez li as primeiras páginas desse livro e compreendi que entrara num outro mundo, que me marcaria definitivamente e do qual nunca mais conseguiria sair. Ou não sairia sem feridas e sem me ter tornado outro.

O que me fascinou foi, desde as linhas iniciais, o movimento de ambiguidades e subentendidos com que o autor joga. Sob a superfície clara, virtuosa, não especialmente equívoca, oculta-se uma série de sentidos inconscientes, de segundos sentidos e, nessa medida, a análise que se vai fazendo, ao longo da obra, de tudo o que é dito, ou escrito, é de uma agudeza nunca vista; a desmontagem, por outras, daquilo que certas personagens "querem" dizer ou "querem" escrever sob o que efectivamente dizem ou escrevem, prefigura brilhantemente o trabalho e as descobertas da psicanálise.

Em Dostoievski, de facto, encontra-se tudo, porventura com uma profundidade de que os seus discípulos e os seus epígonos nunca conseguiram aproximar-se. As grandes questões da filosofia, da religião e da ética; Deus, a liberdade, a culpa, a angústia, a paixão que nos corrói e não sabemos se é verdadeiramente amor, no sentido romântico da palavra, ou doença e, sobretudo, repito, a duplicidade, a ambiguidade das nossas intenções ocultas, do que nos move sem que nós próprios disso nos apercebamos, ou do que, determinando-nos, escapa à nossa consciência.

As personagens de Crime e Castigo, nas suas camadas, são de uma tremenda densidade. O modo como, nelas, o bem é uma face do mal e vive-versa. Nas suas dúvidas e naquela espécie de tribunal da inquisição que transportam interiormente, que as interpela e as castiga - a consciência, o confronto de si consigo. Raskolnikov é absolutamente magnífico e humano nas suas crises, no seu niilismo, na sua reflexão sobre os seus actos, na sua intuição de que todos os seus actos são unicamente seus.

O que me faz pensar é, talvez, a ideia de que alguns dos pensadores que mais admiro, algumas das ideias e filosofias mais interessantes, algumas das obras mais ricas da humanidade, nunca poderiam ter nascido se Dostoievski não tivesse existido. (Heidegger, Sartre, Camus ou Hitchcock, por exemplo, não teriam sido o que foram): Raios! Este rumo, esta beleza, esta força que nos parecem adquiridas e, de algum modo, eternamente estabelecidas na Arte e na Filosofia, afinal nasceram tão tarde. E estão tão próximos...

2 comentários:

C. Vieira disse...

Oi!... :)

Tenha um bom fim de semana!

josépacheco disse...

Muito obrigado, cara leitora. Para si também.