domingo, 30 de maio de 2010

MÁRIO DE CARVALHO: UMA CITAÇÃO


Mário de Carvalho, autor português cuja ironia aprendi a apreciar num conto para crianças, que lia ao meu filho, O Homem que Engoliu a Lua, afirma, numa entrevista a Carlos Vaz Marques, o que passo a citar:

«Já pensou - e este é mais um tema - que o fascismo e o totalitarismo são capazes de ser naturais? E que a evolução humana se tem feito precisamente contra aquilo que é natural? Que o natural de dois homens que se encontram, como dois índios nas planícies americanas, é matarem-se um ao outro? Que o natural, se calhar, é o canibalismo? Que o natural se calhar é a escravização do outro?»

«O natural», acrescenta C. V. Marques, «é as tartarugas serem atacadas e mortas, como acontece tanto no princípio como fim do seu livro, pelos falcões ou pelas corujas-das-torres

Em confronto com o mito do Bom Selvagem, de Rousseau, para quem é a cultura que degrada a bondade intrínseca da natureza, que excelente proposta de análise e discussão para os meus alunos.

sábado, 29 de maio de 2010

ORLANDO VITORINO: MANUAL DE TEORIA POLÍTICA APLICADA


Diz-se, dos cães que comem ervas no jardim onde os leváramos a passear, que o seu organismo instintivamente "procura" aquilo de que tem carência; ou, dos desejos das mulheres grávidas, que obedecem a alguma necessidade orgânica própria do seu estado; lembro-me de um médico que justificava similarmente o facto de uma criança arrancar e comer pedaços de cal de parede.

Talvez alguma carência orgânica, no sentido lato, ligada a uma fase minha de redefinição, esclareça também a forma como o corpo me tem pedido, ultimamente, uma substituição, da habitual dieta de literatura de ficção, por um regime de textos de teoria. Regresso à filosofia, por exemplo, e alguns dos meus últimos posts são disso o sinal: veja-se Kierkegaard e Montaigne. Mas a verdade é que, ainda quando acabam não se tornando leituras tão importantes que mereçam qualquer comentário meu neste blogue, são livros de teoria os que me têm chamado: O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière - ou, nos últimos dias, por recomendação de um colega que lhe elogiava a extraordinária clareza das ideias, Manual da Teoria Política Aplicada, de Orlando Vitorino. E, em resumo, não creio que suceda por coincidência.

Para mim, que me considero inequivocamente um homem de esquerda, ainda que distante de cada um dos partidos de esquerda que encontro, o livro de Vitorino é um puxar do tapete sob os pés. Ao longo das primeiras páginas hesitei em prosseguir uma leitura que me irrita e da qual discordo. Mas, depois, principiei a acalmar. Discordo, muito bem: mas irrita-me, porquê? E não sei se a continue ou se a abandone, porquê? Porque tenho medo de que me ponha em causa? De que abale as categorias e as estruturas que me constituem a tradição cultural, sobre a qual construí toda a minha reflexão e consolido as minhas posições?

É verdade que me parece que a perspectiva de Vitorino radica num erro imperdoável, que é o de criticar a visão "socialista" como um todo, com pressupostos idênticos (um dos quais seria a omnipresença do Estado), trate-se de comunismo, nazismo ou fascismo. É um acto de má-fé intelectual não pensar as diferentes finalidades filosóficas e políticas de diferentes sociedades estatistas, como se não houvesse entre elas distinções de natureza que não podemos ignorar - a não ser pagando o preço de considerar como prescindíveis e irrelevantes o sentido filosófico e político das sociedades. Como é certo, por outro lado, que uma doutrina e um sistema políticos se fundem numa antropologia: mas tenho dificuldade em aceitar que não haja senão os dois rascunhos de antropologia que Vitorino sugere: a do homem como espécie, ou ser colectivo, que se esgotaria na sociedade, destituído de qualquer elemento individual (antropologia essa que levaria aos comunismos); e a do homem como indivíduo, livre, criativo e pensador, mas sem qualquer dimensão social, que não a da mera soma, a posteriori, dos indivíduos. Não seria concebível a mediação? Uma antropologia do indivíduo que não desaparece, enquanto tal, no seio do todo e do todo que seja como que a gramática pujante da realização e da liberdade de cada um?

Isto dito, é evidente que a leitura deste livro é uma discussão profícua: uma discussão do leitor com Vitorino e do leitor consigo mesmo. Se é verdade que ser de esquerda passa também pelo enquistamento em quadros mentais que não nos atrevemos a repensar, nem ao menos a questionar (como, aliás, ser de direita), então trata-se de uma leitura inquietante, exigente, no melhor sentido da palavra, que não nos deixa repousar sobre as certezas adquiridas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

MONTAIGNE: ENSAIOS


Considero encantador este modo de falar de livros: é verdade que se fica com pouco acerca do livro e muito sobre mim, sobre a minha experiência como leitor, sobre as circunstâncias em que descobri o texto e as consequências de o haver descoberto; que diabo há, nisso, de «encantador»? «Encantador", convenhamos, não pelo meu poder de encantar, mas pela transparência com que alguém se expõe; não porque os leitores não preferissem saber dos livros, mas porque se trata antes de lhes oferecer a experiência do ler de um sujeito concreto. Pensando melhor, talvez não achem "encantador": mas é propositado. E a quem o devo? Bem. A Michel de Montaigne.

Montaigne é excepcional.
Há, é claro, dificuldades na sua leitura: por alguma razão que sou incapaz de descortinar, as suas obras completas não estão traduzidas em Portugal. (No Brasil, em contrapartida, penso que existem traduções recomendáveis). Parcialmente, um ou outro dos seus ensaios, porventura os mais conhecidos, foram sendo vertidos para o português de Portugal. Mas sabem sempre a pouco.
Por outro lado, até os leitores que dominam a língua francesa se debatem com um Montaigne que vai sendo publicado, hoje, num francês do século XVI - muito diferente do actual, pouco transparente, exigindo um trabalho em que se gasta a concentração que deveria empregar-se no essencial. Vá-se lá saber porquê. Como se uma campanha idiota quisesse manter entre os velhos, num patamar do passado, um autor todavia tão jovem, tão nosso contemporâneo e tão intemporal.

Montaigne pede constantemente emprestado. Sou franco: as citações que faz de Antigos pensadores Gregos ou dos filósofos Romanos devêm fastidiosas, interrompem o raciocínio que deveriam sustentar, são desagradáveis soluções de continuidade. Mas, de algum modo, o seu estilo, a sua originalidade, a elegância e a profundidade com que coloqueia com o leitor, falando-lhe como se estivessem ambos sentados frente a frente, acerca de si mesmo (Montaigne), ou da sua vida, preferências, saudades, frustrações, traz aos seus ensaios - e é ele, precisamente, o inventor do "ensaio" neste sentido - uma frescura e uma proximidade maravilhosas.

As fórmulas de Montaigne são inspiradas. Algumas vezes, com alguns autores - Proust, sem dúvida -, mas raramente e com muito poucos, sucede percebermos como uma frase exprime uma intuição notável, aparentemente fácil, como se escondesse no ventre o trabalho que deu, como se ocultasse todas as voltas da sua construção, ocultasse as vezes que terá sido sucessivamente apagada, e rescrita, até se realizar como pensamento perfeito, coincidente com as palavras mais adequadas: como uma formulação que acerta exactamente no coração da vida.

Retomo-me: lendo Montaigne, que é, de facto, a única matéria dos seus próprios ensaios, vejo que tudo fala de si, com uma sageza que não é destituída de afecto: uma sabedoria de homem que usou o pensamento, não para se libertar, graças a ele, do mundo real e concreto, mas para melhor entrar nos pormenores da realidade, que viveu, pensou, sofreu e gozou.

MAUGHAM: UMA CERTA PERSONAGEM

Em O Fio da Navalha (mas será mesmo em O Fio da Navalha?) há uma personagem comovente, que atesta bem a penetração psicológica de Somerset Maugham, a que me referi já.
Trata-se de um idoso, que veio envelhecendo na ilusão do "social". Um pouco delirantemente porque, no seu caso, tudo teria mais que ver com o sonho e com a aparência que se esforçava por manter, do que com a realidade, esse simples funcionário empenhou toda a vida na ideia de que lhe reconheciam a nobreza de sangue e o "chic" de maneiras. Os últimos meses de vida jogaram-se e esgotaram-se na ansiosa espera de um convite para um "evento social" (como se diz hoje) a que, porém, não assistirá porque, precisamente, morre sem saber se seria convidado. Não me devo enganar muito, ao contar que os amigos o enterram com o convite, finalmente chegado, entre as mãos.
Não há qualquer azedume da parte de Maugham em relação a esta deliciosa personagem. O ridículo corre-nos a todos nas veias. As fraquezas são parte da nossa graça. Este homem dever ter existido. Conheço gente tão assim, que não é possível que Maugham não estivesse a pensar em alguém...

domingo, 23 de maio de 2010

SOMERSET MAUGHAM: SERVIDÃO HUMANA

O conhecimento que tenho de uma grande parte da obra de Somerset Maugham e o prazer com que a ela continuamente retorno são dos principais legados da minha mãe. É-me sempre grato, ainda hoje, ouvi-la contar (e voltar a contar) os enredos. Lembro-me, nos mínimos pormenores, das histórias que me narrava em criança: ao Capuchinho Vermelho ou à Branca de Neve, preferia o evoluir mais complexo dos livros que ia lendo, e Somerset Maugham foi sempre o seu autor predilecto, pelo que, oralmente, a minha familiaridade com os romances deste autor terá principiado relativamente cedo.

Minha mãe, de resto, tem toda a razão. Pegamos numa novela menor de Maugham, Um Casamento em Florença, por exemplo, e percebemos como, até quando alguém escreve sem outro intuito que não o de divertir-se e divertir o leitor, a qualidade, se existe, é indisfarçável - apesar dos erros, das coincidências, da ausência de rigor, da displicência...

E quando um autor que se dá ao luxo de ser muitas vezes displicente é, mesmo assim, extraordinário, imaginem o que sucede quando se decide entregar convictamente ao trabalho, com uma ideia forte, personagens interessantes, espírito de observação, originalidade.
Nem precisaria de se tratar de um romance: Somerset Maugham é, aliás, dos mais apurados escritores de "contos" que conheço, e um conto não é um romance imperfeito nem mais magrinho, não é um texto incompleto ou resumido, mas uma forma própria, porventura mais difícil, com um ritmo especial e uma orquestração do tempo e da tensão muito particulares, que ele domina magistralmente. A Chuva é incomparável, e de uma intuição psicológica agudíssima.

A minha mãe, todavia, escolheria Servidão Humana e O Fio da Navalha. Compreendo-a. Servidão Humana é a história de Philip Carey, um jovem extremamente inteligente mas com uma deficiência que o marca e complexa nas suas relações com o mundo em geral e com as mulheres em particular. E Mildred, uma mulher de "baixa extracção social" (ah, parece-me estar ouvindo esta expressão à minha mãe...), entrar-lhe-á na vida, capaz de o usar, abandonando-o e regressando sucessivamente, estragando-lhe todas as relações entretanto iniciadas, segura de que ele lhe perdoará e aceitará tudo, a prepotência, o desamor, o desprezo, numa dependência sem limites. É um romance amargo, que penetra o âmago da psicologia do homem, das relações, da frieza e da servidão. É de uma intensidade e de uma profundidade inesquecíveis.

De facto, as personagens de Somerset Maugham são inquietantemente próximas de nós. Reconhecemo-las. Conhecemo-las bem, no fundo. Exasperam-nos, embora raramente sejam más ou de uma temível perversidade: apenas demasiado fracas ou excessivamente fortes, criando, nessa desigualdade, a relação errada e doentia; apenas obsessivas e tristes, perseguindo sonhos ridículos. Apenas como nós, vistas a uma luz que nos permite compreendermo-nos melhor, mas nem sempre nos redime. Mas que, ainda assim, ainda que nem por isso nos salvemos, temos de ler.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

EXAMINAR A PRÓPRIA VIDA NOS LIVROS

Vi escrito, a propósito dos livros de Alain de Botton - mais uma afinidade que descobri na minha amiga brilhante -, que ele devolve à filosofia um lado que sempre lhe fora inerente e se tem perdido: o de nos ensinar a examinar e a viver a vida.

Pois eis como, em Kierkegaard, que continuo lendo, reencontro essa dimensão de pensar que ajuda a pensar-me - e a pensar os meus actos. Quase como se, à semelhança de certos descodificadores das linhas do futuro nas folhas de chá ou em máximas chinesas, também deparasse, a cada momento, em cada linha, com a resposta que me faltava, a lição por que aguardava.

E, por exemplo, para mim, isto faz todo o sentido:

«[...] é grande renunciar ao desejo, mas é maior apegar-se a esse desejo depois de haver dele abdicado; grande é agarrar o eterno, mas maior é segurar o temporal depois de haver dele abdicado.»

Ou:

«Só as naturezas inferiores se esquecem de si próprias e se transformam em algo de novo. Assim a borboleta esqueceu completamente que fora larva, porventura poderá voltar a esquecer completamente que era borboleta a ponto de se transformar em peixe. As naturezas mais profundas nunca se esquecem de si próprias, nunca se transformam numa coisa diferente do que foram

Por alguma razão, neste momento, precisava de o ouvir.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

KIERKEGAARD: TEMOR E TREMOR


Quando se liberta da rigidez do significado, ou seja, de ter de «significar coisas», a linguagem ganha um insuspeitado poder, descobre virtualidades imprevistas e transforma-se no seu próprio sentido: comporta em si a sua verdade, em vez de se limitar a dizer o que sucede no mundo fora de si, como se fosse o mero veículo de uma mensagem sobre a realidade exterior, um dedo a apontar para o estado das coisas. Tal linguagem, que se revela mais a si própria e ao seu segredo íntimo do que revela o "extrínseco", é a poesia.

De algum modo, julgo, o filosofar não reside longe do labor poético. Que procuro eu num texto filosófico? A verdade? Deus me livre. Busco, por um lado, um ângulo, nada mais do que isso; e a quantos mais ângulos tiver acesso (isto é, quantos mais filósofos for lendo), mais a minha visão da realidade se vai multifacetando. Mas, nesse ângulo, em cada ângulo, em cada filosofia, interessa-me a forma como é desenhada. O risco de propor uma interpretação a que não se haviam atrevido antes, mas, de facto, nos interpela e faz pensar.

Há, também, algo de estético, nesta minha apreciação do texto filosófico: como se se tratasse de operar com conceitos e, no domínio dos conceitos, também o filósofo fosse um artista da linguagem, um poeta que, a seu modo, persegue as palavras e os argumentos mais ricos e interessantes para exprimir e justificar uma certa tese. Não peço aos filósofos experimentações nem provas da sua visão: apenas que ela se exponha através de frases que me façam compreender o seu ângulo.

Há, por isso, filósofos que prefiro a outros. Os que se confundem com cientistas, e julgam que a sua actividade deve ser entendido como uma forma de ciência, parecem-me os menos interessantes de todos. E os mais equivocados. Mas em Platão, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard ou Nietzche, o que encontramos - tenha ou não que ver com "a" verdade - é poesia e drama: cada texto de cada um deles é sempre libertador, porque, apresentando-nos uma certa tese, numa formulação que não pode deixar de nos tocar, faz-nos seguir, por dentro (e por dentro de nós) a construção da mesma, o seu erguer. Não podemos simplesmente contemplá-la e aceitá-la: temos de a compreender, isto é, de alguma forma, seguir-lhe os passos através do nosso próprio pensar.

E tudo isto me surge a propósito de uma tradução recentíssima de Kierkegaard, que venho de comprar. Não tinha praticamente dinheiro mas, mesmo assim, não resisti. (Acontece-me, com os livros, mais frequentemente do que a minha família consegue perdoar-me...). É Temor e Tremor.

Aconselharia os leitores menos familiarizados com a terminologia técnica da filosofia a prescindir da «introdução». Mergulhem imediatamente no texto: este não carece de enquadramento (a não ser, claro, o de algumas notas), não precisa de uma explicação prévia. Fala por si, e à inteligência de cada um e à de todos nós.

A forma como Kierkegaard se sente fascinado por Abraão e pelo sacrifício que este se propõe fazer, a Deus, do seu próprio filho, Isaac, oferece-nos algumas das páginas mais maravilhosas acerca do que só pode ser visto como um enigma. E um paradoxo. Se me permitem, ao contrário da visão mais estreita de Saramago, que olha a Bíblia de fora, isto é, sem nada querer realmente compreender, reduzindo tudo a uma colecção opaca de actos maus e vergonhosos, o que Kierkegard intui é o drama de um pai que não poderia senão sacrificar o que lhe é mais valioso: o seu filho; mas o contrário não seria igualmente compreensível? Que o amor pelo filho fosse a recusa do sacrifício deste? E pode amar-se um Deus que exige um tal acto? Que múltiplos e intrincados fios os de que se tece a fé, o amor, a paternidade. E que sentidos diferentes as nossas escolhas engendram.

Mais do que uma dívida ao eternamente certo ou errado, Kierkegaard mostra-nos que os nossos actos são escolhidos em face daquilo que valorizamos, e esta liberdade irrecusável, incontornável, tem que ver (para não nos afastarmos dos lugares-comuns que acabamos sempre por dizer acerca do filósofo) com este núcleo terrível, que é a angústia.

E ao ler, não me interessa saber se Kierkegaard tem razão, tal como não pergunto se o poeta a tem. Sigo as linhas e percebo que penetrei num mundo de pensamentos, que se vão estruturando como obras de arte. Que me chamam na medida em que as compreendo, ou vou compreendendo, como se me fosse dado o privilégio de pensar conjuntamente com o autor.
Talvez esteja enganado. Mas nunca pedi mais do que isto à filosofia.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

JORGE LUIS BORGES: O LIVRO DE AREIA

Talvez não seja rigorosamente verdade que esse fosse o primeiro texto que li de Borges. Mas admitamos que sim. O ponto é que, por mais que tente regressar na minha memória, não me lembro de haver outro. Portanto, para todos os efeitos - e para efeitos do mito que, para mim, para a minha consciência e para a história pessoal, me agrada estabelecer -, as circunstâncias desta descoberta e a descoberta propriamente dita foram tão fortes, que nunca poderia ser inteiramente falso afirmar que «esse foi o primeiro texto que li de Borges»...

Vão já compreender. Estava em Paris. Começa bem, não começa? Tinha certamente mais de dezoito anos, talvez quase vinte. Suponho que se trata de uma viagem que fiz com o meu irmão, a expensas suas. Mas, uma vez desaguados na Cidade-Luz, separámo-nos, ele envolvido no trabalho a que fora chamado, eu - livre como um passarinho, sedento, curioso, sorvendo ruidosamente todos os pormenores. Mais: o meu irmão dormia em casa de uns amigos, eu ficava completamente só num quarto de Pensão. Estava maravilhado.

Fui um flâneur. Não tinha horas, nem responsabilidades, nem compromissos. Almoçava onde queria, insistia em regressar ao Quartier Latin, entrava e saía de lojas, descobria a escada rolante - então uma relativa novidade -, perdia-me entre "bouquins" em saldo.

Foi na Gibert Jeune, essa deliciosa livraria de vários andares, de onde se sai levando sacos amarelos, de plástico, com um rosto estampado, suponho que o de Gibert Jeune. E, numa banca, lá estava Jorge Luis Borges - ou seja, não o próprio, mas um livro de contos chamado O Livro de Areia.

O título é fabuloso. Mas, nesse livro, enterrou-se em mim um conto em particular, que não sei - e não vou agora pesquisar - se seria o do mesmo título. Sei que se vai desenvolvendo a propósito de um bardo a quem o rei encomendara um poema onde se cantasse a grandeza do rei e do seu reino. E de três sucessivas tentativas do bardo: as duas primeiras recusadas pelo monarca, a última, a síntese absoluta, expressa numa palavra única. Uma palavra indizível, de novo esquecida a seguir, ou evitada, mas onde os ouvidos que a ouvem conseguem encontrar a vida e a morte, o tempo e a intemporalidade, os grãos de areia e os sons da música, e de todas as músicas, os homens, as mulheres e as crianças, os que faleceram e os que estão vivos ou os que virão a nascer, os olhares, os amores, o mar, o céu, os latidos, os uivos, a tristeza, a alegria, a saudade, os animais, as escritas que se inventaram e não subsistiram, as letras que compõem todos os textos já escritos ou por escrever e, portanto, num ponto do futuro antevisto, também as letras com que redijo este post, e o post, e o computador em que o escrevo, e os dedos com que o escrevo, a partir de um corpo e de uma consciência que são o que me forma a mim mesmo escrevendo-o, bem como os olhos dos leitores que o virão a ler - e repare-se no maravilhoso desfasamento que há entre o tempo em que bato nas teclas, sem quaisquer leitores, e o tempo em que tu, leitor, estarás lendo o que escrevi: estás aí agora, leitor? É o teu presente!? Estás lendo estas linhas que, no momento em que as lês, eu já não estou escrevendo, sendo que talvez já me tenha ido embora, e podendo até ser que neste momento em que me lês eu já não seja eu, já nem sequer exista?

Podem imaginar a sensação de pertubador fascínio com que, à noite, a sós no meu quarto de uma Pensão, com a janela entreaberta para uma rua movimentada, talvez com a televisão ruidosamente ligada em fundo (mas não garanto...), devorei esse conto - e, depois, todos os outros? A vertigem de infinito e totalidade que me fez quase desmaiar? A intuição da loucura próxima, se me quisesse deixar enlouquecer por aí fora?

Não devo errar por muito. A exactidão dos factos é um mero pormenor. Se esse não foi o meu primeiro Borges, será, daqui para diante, o meu primeiro Borges.

terça-feira, 11 de maio de 2010

FREDERICO LOURENÇO: A TRILOGIA DE NUNO GALVÃO


Frederico Lourenço, que escreve o trecho que citei em post anterior, é um dos mais completos e rigorosos tradutores da Ilíada e da Odisseia. Para além disso, os seus ensaios sobre a cultura, o teatro, a poesia e os autores helénicos são dos textos mais límpidos, e límpidos é, de facto, a palavra que imediatamente me ocorre a seu respeito, que tenho lido no que toca a literatura de investigação.

As mesmas clareza e elegância de estilo se mantêm quando se trata da sua obra ficcional.
Frederico Lourenço é o autor de uma trilogia - Pode Um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas e À Beira do Mundo: todos publicados nos Livros Cotovia, o primeiro, Prémio Pen Club 2002 - cujo protagonista é Nuno Galvão, um professor universitário, de cerca de quarenta anos, homossexual, bem parecido, vagamente ambicioso, porventura seu alter-ego.

Mas, sobre a atmosfera profundamente hierarquizada e secretamente conflituosa do meio académico, escalpelizada de um modo quase cruel, principalmente para quem conheça o meio e não tenha dificuldade em reconhecer-lhe os mecanismos, as angústias, as brigas, a falta de escrúpulos, talvez até algumas das personagens, o humor de Frederico Lourenço corta como uma lâmina afiada.

Os equívocos que se complicam em torno de Nuno Galvão, até como objecto do desejo de mulheres incapazes de lhe detectar a homossexualidade, mais do que um elemento cómico nos romances, revelam as modalidades de um subtil mas permanente desnivelamento na existência - familiar, profissional, erótica, amorosa - de um homem em luta consigo mesmo. E é interessante este pormenor: o facto de não haver - praticamente - uma literatura gay em Portugal leva a que, ao contrário do que ocorre nos EUA, em que uma tradição está já configurada nos seus problemas, nos seus dilemas, nos seus clichés, entre nós tudo seja muito novo, de uma singular frescura, e tudo seja pessoal, e tudo seja arrojado: portanto, essa "luta consigo mesmo" é trabalhada, por Frederico Lourenço, de uma forma lúcida, sofrida, melancólica, inovadora: como a fenomenologia de uma auto-consciência homossexual, em que a dialéctica entre o que se quer tornar visível e o que se quer esconder, ou a complicada fronteira entre o "assumir" e o "ocultar" não poderiam deixar de ser um elemento integrante, essencial, qualquer que seja a escolha que finalmente se faça.

Ao contrário dos escritores gay norte-americanos, para quem a literatura se torna um instrumento ideológico, impregnado de contemporaneidade, em Frederico Lourenço reconheço um delicioso anacronismo. A visão, transposta para o presente, de um Antigo Grego. Erótica e esteticamente. O que é de uma inesperada beleza.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A PROPÓSITO DA ILÍADA, DE HOMERO: FREDERICO LOURENÇO


«O escudo segurado por Aquiles é uma maravilha da metalurgia e da poética. Na descrição pormenorizada que dele faz o poeta no Canto XVIII, apercebemo-nos de que é todo um universo de experiência humana que está gravado no escudo. Vemos a terra, o céu e o mar; o sol, a lua e todos os astros do firmamento. Duas cidades se destacam pelas situações contrastantes em que se encontram. Numa, celebra-se uma boda com música e dança. A outra está em guerra, cercada: até as mulheres, as crianças e os velhos têm de defender as suas muralhas. Os homens saem para uma emboscada e chegam a um local idílico, aonde vão ter dois pastores com os seus rebanhos, tocando flauta. Apesar de indefesos, os pastores são mortos pelos soldados. Na expressão "deleitando-se ao som da flauta", que o poeta aplica aos pastores, e na descrição dos soldados escondidos "revestidos de bronze" encerra-se todo um mundo de contraste, toda a desumanidade da guerra, toda a precariedade da paz.»

Frederico Lourenço, «Ilíada: O Primeiro Livro», Grécia Revisitada, Livros Cotovia, Lisboa 2004

Duas notas tão-só:

Em primeiro lugar, para agradecer a uma das jovens brilhantes a que já anteriormente me referi, 0 ter-me lembrado a pura maravilha que é, na Ilíada, a descrição do escudo de Aquiles.

Em segundo lugar, para manifestar o meu assombro perante a enganadora simplicidade da escrita de Frederico Lourenço. Esta limpidez é, ao mesmo tempo, de uma tal intensidade, que nos apetece procurar, de imediato, o texto de Homero. Não é?

sábado, 8 de maio de 2010

DOSTOIEVSKI: CRIME E CASTIGO


Gostaria de poder dizer que me surgiu esta pergunta na adolescência, implicando isso que eu teria lido, muito novo, Dostoievski (o que, por coincidência, é verdade), mas, sobretudo, que era então já capaz de intuições precoces. Sucede que a tive adulto. E, nesse caso, está longe de ser precoce. Todavia, assumo a infantilidade do meu espanto...

Quando me compenetrava de que, bem vistas as coisas, Dostoievski é um autor do século XIX, ou seja, a bem dizer, de ontem, sentia, com um arrepio de estranheza, que a literatura, até ao século XIX, ainda não começara verdadeiramente. Apesar de Homero, apesar de Virgílio, apesar de Dante ou Shakespeare. Pode parecer estúpido. Mas tenho o mesmo tipo de arrepio quando penso em como Proust é recente. Caramba. Vieram tão tarde, de certa forma, alguns daqueles que deram à História da Literatura uma dimensão maior, um sentido absoluto, um fundamento iluminador. A sua verdade! (Sim, eu sei: não existirá "a" verdade da literatura, mas qualquer coisa como uma totalidade de sentido, com um contorno que se não completaria sem Proust,Dostoievski - e só não falo de contemporâneos, porque o tempo decidirá...)

Outra revelação: não possuo, entre os meus livros, Crime e Castigo. Não me perguntem porquê, sou peculiar.

No entanto, li três vezes este romance. Lembro-me tão bem da primeira delas. A da descoberta. A de me estar embrenhando num continente selvagem, onde nada me era familiar e tudo me exigia novos instrumentos.
Como diria E. Prado Coelho (naquelas suas frases que, aliás, tanto me irritavam), por uma vez li as primeiras páginas desse livro e compreendi que entrara num outro mundo, que me marcaria definitivamente e do qual nunca mais conseguiria sair. Ou não sairia sem feridas e sem me ter tornado outro.

O que me fascinou foi, desde as linhas iniciais, o movimento de ambiguidades e subentendidos com que o autor joga. Sob a superfície clara, virtuosa, não especialmente equívoca, oculta-se uma série de sentidos inconscientes, de segundos sentidos e, nessa medida, a análise que se vai fazendo, ao longo da obra, de tudo o que é dito, ou escrito, é de uma agudeza nunca vista; a desmontagem, por outras, daquilo que certas personagens "querem" dizer ou "querem" escrever sob o que efectivamente dizem ou escrevem, prefigura brilhantemente o trabalho e as descobertas da psicanálise.

Em Dostoievski, de facto, encontra-se tudo, porventura com uma profundidade de que os seus discípulos e os seus epígonos nunca conseguiram aproximar-se. As grandes questões da filosofia, da religião e da ética; Deus, a liberdade, a culpa, a angústia, a paixão que nos corrói e não sabemos se é verdadeiramente amor, no sentido romântico da palavra, ou doença e, sobretudo, repito, a duplicidade, a ambiguidade das nossas intenções ocultas, do que nos move sem que nós próprios disso nos apercebamos, ou do que, determinando-nos, escapa à nossa consciência.

As personagens de Crime e Castigo, nas suas camadas, são de uma tremenda densidade. O modo como, nelas, o bem é uma face do mal e vive-versa. Nas suas dúvidas e naquela espécie de tribunal da inquisição que transportam interiormente, que as interpela e as castiga - a consciência, o confronto de si consigo. Raskolnikov é absolutamente magnífico e humano nas suas crises, no seu niilismo, na sua reflexão sobre os seus actos, na sua intuição de que todos os seus actos são unicamente seus.

O que me faz pensar é, talvez, a ideia de que alguns dos pensadores que mais admiro, algumas das ideias e filosofias mais interessantes, algumas das obras mais ricas da humanidade, nunca poderiam ter nascido se Dostoievski não tivesse existido. (Heidegger, Sartre, Camus ou Hitchcock, por exemplo, não teriam sido o que foram): Raios! Este rumo, esta beleza, esta força que nos parecem adquiridas e, de algum modo, eternamente estabelecidas na Arte e na Filosofia, afinal nasceram tão tarde. E estão tão próximos...

segunda-feira, 3 de maio de 2010

V. S. NAIPAUL: UMA CASA PARA MR. BISWAS



Já sabíamos que todos os livros - ou autores - têm um tempo certo para que com eles nos cruzemos. Ando há muitos anos em busca do momento ideal para me atirar a Ulysses, por exemplo. O do James Joyce. Todas as minhas tentativas foram inúteis, mas acredito que um dia ele consiga ensinar-me a lê-lo, levando-me pelas suas páginas adentro.

Quem diria, contudo, que há também um "tempo certo" para falarmos acerca deste ou daquele livro que lemos?
Em alguns casos, deverá ser imediatamente após a leitura, enquanto ainda nos sentimos contagiados, numa urgência desatinada, uma espécie de excitação febril, uma incapacidade de espera.
Em outros, pelo contrário, carecemos de uma digestão prolongada, como a jibóia, deixando que a transformação interior se vá fazendo, as raízes se fortaleçam, a reflexão se apure.

Comigo, sucedeu algo estranho a propósito do tempo necessário para me referir a V.S. Naipaul.
Desde a inauguração deste blogue que o pressinto no horizonte, como uma promessa feita a mim próprio. Mas a verdade é que adiei sempre o post que gostaria de dedicar ao primeiro livro que li da sua autoria (e, de todos os que fui descobrindo, aquele que me falou mais alto): Uma Casa para Mr. Biswas.

Os escritores indianos de expressão anglo-saxónica (embora Naipaul seja um indiano nascido na Trinidad) estão, se isso pode constituir um critério, entre os meus predilectos. Encontro, na forma como escrevem - nos temas, nas descrições, na linguagem, no humor -, uma duplicidade a que não sou indiferente e que atribuo ao confronto entre as culturas que os influenciaram, que os fizeram. A respiração de uma religiosidade profunda, um paganismo exuberante e riquíssimo, por um lado, e a disciplina e o rigor britânicos, por outro lado, ou aquele leve distanciamento irónico que passa tão depressa por arrogância, chocam-se num casamento improvável, quase paradoxal, mas com excelentes frutos.

E, deste ponto de vista, Uma Casa para Mr. Biswas é um romance imperdível. Adiei o meu possível texto, talvez porque o livro em causa se encontrava já longe, porque marcou, sem dúvida, uma etapa no meu crescimento como leitor, mas nunca mais o reli: porque o fascínio se transformara mais na memória de um fascínio do que outra coisa; em suma, porque ainda não chegara o tempo certo para o partilhar. (Ou porque esse tempo já tinha passado...).

Mas à volta de uma casa, e da importância que a ideia da casa onde viver e morrer adquire para a sua personagem, Naipaul constrói uma história que desce ao nascimento e à infância daquela, na sua luta solitária e permanente contra tudo e todos: o destino, a família, os vizinhos, o professor, os colegas...

E perante o leitor move-se o absurdo de um mundo e de uma vida em que todos são um pouco ridículos. Em todos os casos, o ridículo nasce de uma desadequação entre a grandiosidade do discurso (de alguém que assume o papel de pai, ou o de um professor, ou o de um santo hindu...) e o impulso egoísta e mesquinho que, efectivamente, mobiliza aquelas pessoas, e o papel e o discurso de cada uma não faz senão mascarar.

É um livro sem concessões e politicamente incorrecto. Um olhar desapiedado se projecta sobre os homens. O povo é sempre, entre a miséria e o sacrifício, pouco digno, pouco respeitável. Espantou-me que o Nobel, habitualmente tão preocupado com a "adequação" dos premiados, tivesse, num certo ano, perdido a cabeça. Não encontramos, em Naipaul, nenhuma "correcção", nenhuma cartilha de virtudes subjacente ao modo como toca nas personagens: nenhuma se limita a ser um boneco para veicular teses; nada de proselitismo. Apenas o mergulho nas contradições humanas, na insuficiência moral, na mesquinhez religiosa ou política. Não há bons, não há maus. Unicamente a massa de que somos feitos, tratada com algum cinismo e um humor eficaz, numa escrita que, não deixando, aparentemente, pedra sobre pedra, deixa precisamente o brilho de uma casa: ou seja, da força de um sonho (o de ter uma casa) contra o destino.