quarta-feira, 31 de março de 2010

JORGE DE SENA: SINAIS DE FOGO



Jorge de Sena era um homem pouco linear: o seu retrato teria de ser traçado no claro e escuro das melhores qualidades e dos mais sórdidos defeitos. Num certo sentido, a própria obra reflecte esse desequilíbrio ético, podendo ir de um livro infame, editado na íntegra (penso que pela primeira vez), Dedicácias, verdadeiro concentrado de invejas, ressentimentos e ódio ao próximo ou ao brilho do próximo, até, no outro extremo, um romance tão extraordinário como Sinais de Fogo.

Já em mais do que um post me referi a essa espécie de admiração, nos dois sentidos da palavra, que não consigo evitar em face de autores de obras únicas mas imediatamente geniais. Em Portugal, existem estes dois casos flagrantes: David Mourão-Ferreira que, se escrevera poesia, se escrevera contos, nunca se tinha aventurado por um romance: e quando escreveu um, caraças!, logo haveria de ser o surpreendente Um Amor Feliz, tão bem urdido na sua progressão, com algo de um policial que não é, e tão longe da grosseria ou do preconceito a que o poderia ter arrastado o tratamento dos sentimentos inquietos e ambíguos associados a um amor secreto, todo feito de culpa, separações e distanciamento físico.

O outro é, precisamente Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. (Do meu ponto de vista, O Físico Prodigioso, também da sua autoria, não é propriamente um "romance").

Sinais de Fogo é uma obra maior da literatura portuguesa: lembro-me perfeitamente da primeira página, muito bem escrita, absoluta reveladora da mestria (rara) de prender o leitor desde as primeiras linhas. (Há tantos romances aos quais só falta, quase, para a perfeição, o dom da primeira página, das primeiras linhas...). O espírito de observação de Jorge de Sena tem qualquer coisa de cinematográfico; note-se a descrição de pequenos gestos e pormenores: Repare-se, entre centenas de possíveis exemplos, neste, tão simples e tão eficaz, que nunca esqueci, de um jovem que, saindo de uma escaramuça, manifestando, ainda em altos brados, a sua indignação, vem "enterrando" as fraldas da camisa por dentro das calças.

Esse romance tem como eixo o Verão de 1936; a Guerra Civil de Espanha será, na economia do texto, o elemento do despertar do protagonista para a política. Mas, neste "despertar", é à formação total do jovem que assistimos, na sua descoberta do amor, da sexualidade (e da homossexualidade), da revolta - e, já agora, da poesia: e essa formação é, ao mesmo tempo, uma "iniciação", entre dúvidas e medos, entre o interdito e o desejado, entre sinais que o marcam, e o destroem no que era, reconstruindo-o no que irá sendo.

Há páginas que nos marcam definitivamente: algumas são de uma violência implacável, terrível. De algum modo, estamos pisando um território em que as certezas morais são completamente abaladas. O Bem e o Mal tornam-se o elemento de um dilema e de um conflito permanentes, em que são averiguados, e testados, num pôr em causa dos ditames de que a geração anterior o haviam imbuído.

A juventude é, precisamente, isso: tudo se experimenta, e de toda a experimentação se vai fazendo o adulto que seremos. E nessa compreensão de um tempo de mudança e crise, Sinais de Fogo é um livro inesquecível.

3 comentários:

Anónimo disse...

A mim espanta-me é condenarem Jorge de Sena por uma coisa que nunca fez, dar para publicação as Dedicácias. Já era só ossos quando, passados treze anos, lhe publicaram as primeiras diatribes sem que - friso mais uma vez - pudesse ter dado autorização para isso. Porque ESTAVA MORTO. É um direito de todos escrever para si mesmo, tal como o é pensar. Gostaria (ou não)de ler o pensamento de cada um acerca dos seus ódios de estimação. Estes moralismos de sacristia desesperam um santo.

josépacheco disse...

Bem, é verdade. Embora do "pensar" ao "escrever", mesmo que para si, vá um grande passo: e, sobretudo, quando se trata de escrever tão cuidada, poética e diligentemente os seus insultos, o seu desprezo, o seu ressentimento.Não nego a ninguém o direito de o fazer, pode é custar-me ver que um espírito tão elevado seja capaz de tamanha concentração de sentimentos negativos em relação ao próximo. Qualquer das maneiras o meu post, escrito no escuro beato da sacristia, tinha unicamente o intuito de chamar a atenção para a grandeza de Sinais de Fogo. O resto é paisagem. Vale o que vale.

josépacheco disse...

A mim, o que impressiona, é a confirmação (anónima, no caso) de que certas figuras têm de ser por força intocáveis. Dizer de um livro que, na revelação daquilo que revela, é infame - embora, vá lá!, a elaboração dessa poesia seja um pouco mais do que "pensar" ou "escrever para si", hum..? - é moralismo barato e bacoco. Sim senhor. O livro está, portanto, antecipadamente imune a qualquer crítica: Jorge de Sena NUNCA O DEU PARA PUBLICAÇÃO!