sexta-feira, 26 de março de 2010

ENCONTRO COM REINALDO ARENAS



Há algum tempo que, em vão, procuro Reinaldo Arenas. Na verdade, desde que vi um filme acerca da sua vida atormentada na Cuba de Castro, que nunca o aceitou, nem à sua homossexualidade, nem à sua obra (ambas, aparentemente, consideradas contra-revolucionárias). O filme chamava-se "Antes que Anoiteça"; a obra por mim buscada tinha o mesmo nome.

Afinal, descubro Arenas por outra via: O Assalto, romance denso e horroroso, no sentido em que o horror é a sua matéria-prima. E como em A Metamorfose, também aqui os homens, se o são, se o são ainda, se reconfiguram no limiar de uma abjecta forma animal. De algum modo, porém, o animal em que os seres humanos devieram é todos os animais: numa descrição que nunca pretende torná-los visíveis, ora aparecem referidos como porcos, ora como cavalos, ratos, insectos vários. Ora como aves predadoras, por causa dos bicos e das garras, esse elemento permanente, esse mecanismo omnipresente no texto.

Qualquer coisa no todo do romance respira o secretismo de um código: basta olharmos para os títulos dos capítulos, que, reenviando para títulos de capítulos das mais variadas obras [por exemplo: «Os Sete Selos da Canção do Alfa e do Ómega» (Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra) ou «Sobre os Sindicatos, o Momento Actual e os Erros de Trotski» (Vladimir Ilich Lenine, Obras Escolhidas)], nada têm, aparentemente, que ver com o conteúdo. Mas, se não têm, deixam uma dúvida, uma suspeita, a necessidade de ler nas entrelinhas ou de pesquisar as passagens para que remetem. E nesse código, na cifra a que O Assalto parece aspirar, é quase inevitável vermos uma alegoria do totalitarismo.

É uma sátira brutal: todos os sentimentos e afectos autenticamente humanos deram lugar ao puro instinto da sobrevivência, numa sociedade a que o chefe impôs o princípio da eficácia, negando sistematicamente tudo o que fossem nomes ou lugares de poesia, sonho ou preguiça. Um pouco à maneira de 1984, de Orwell, é a linguagem desse povo dominado que tem, primeiramente, que sofrer uma depuração, transformando-se numa novilíngua: não existe noite, mas não-noite, por exemplo, porque o Reprimeiríssimo assim decidiu.

Nesta sociedade despojada de sentimentos - que não sejam o ódio, chamemos-lhe "sentimento" -, tudo está assombrado pela obsessão implacável do narrador-protagonista relativamente à mãe, que procura por todo o todo lado, para a matar: ele não vive, não pensa, não sente senão em função do cumprimento deste objectivo, antes que se pareça demasiado com ela, antes que se transforme nela, antes que não tenha outra saída: mas saída para quê? que outra via, que outra solução poderia alguma vez haver?

Tudo o que é horroroso e perverso se condensa nestas páginas, como chave para a compreensão da fronteira entre o humano e o não-humano: mas um horror guiado pela imaginação delirante e pelo humor corrosivo de Arenas; e isso, por sua vez, a cada passo nos mostra que, mesmo quando se trata de encontrar as faces do mal e do monstruoso, se trata muitas vezes - já desde a tragédia Grega - de dar, ao resultado, a forma sublime de um objecto artístico.

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