quarta-feira, 31 de março de 2010

JORGE DE SENA: SINAIS DE FOGO



Jorge de Sena era um homem pouco linear: o seu retrato teria de ser traçado no claro e escuro das melhores qualidades e dos mais sórdidos defeitos. Num certo sentido, a própria obra reflecte esse desequilíbrio ético, podendo ir de um livro infame, editado na íntegra (penso que pela primeira vez), Dedicácias, verdadeiro concentrado de invejas, ressentimentos e ódio ao próximo ou ao brilho do próximo, até, no outro extremo, um romance tão extraordinário como Sinais de Fogo.

Já em mais do que um post me referi a essa espécie de admiração, nos dois sentidos da palavra, que não consigo evitar em face de autores de obras únicas mas imediatamente geniais. Em Portugal, existem estes dois casos flagrantes: David Mourão-Ferreira que, se escrevera poesia, se escrevera contos, nunca se tinha aventurado por um romance: e quando escreveu um, caraças!, logo haveria de ser o surpreendente Um Amor Feliz, tão bem urdido na sua progressão, com algo de um policial que não é, e tão longe da grosseria ou do preconceito a que o poderia ter arrastado o tratamento dos sentimentos inquietos e ambíguos associados a um amor secreto, todo feito de culpa, separações e distanciamento físico.

O outro é, precisamente Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. (Do meu ponto de vista, O Físico Prodigioso, também da sua autoria, não é propriamente um "romance").

Sinais de Fogo é uma obra maior da literatura portuguesa: lembro-me perfeitamente da primeira página, muito bem escrita, absoluta reveladora da mestria (rara) de prender o leitor desde as primeiras linhas. (Há tantos romances aos quais só falta, quase, para a perfeição, o dom da primeira página, das primeiras linhas...). O espírito de observação de Jorge de Sena tem qualquer coisa de cinematográfico; note-se a descrição de pequenos gestos e pormenores: Repare-se, entre centenas de possíveis exemplos, neste, tão simples e tão eficaz, que nunca esqueci, de um jovem que, saindo de uma escaramuça, manifestando, ainda em altos brados, a sua indignação, vem "enterrando" as fraldas da camisa por dentro das calças.

Esse romance tem como eixo o Verão de 1936; a Guerra Civil de Espanha será, na economia do texto, o elemento do despertar do protagonista para a política. Mas, neste "despertar", é à formação total do jovem que assistimos, na sua descoberta do amor, da sexualidade (e da homossexualidade), da revolta - e, já agora, da poesia: e essa formação é, ao mesmo tempo, uma "iniciação", entre dúvidas e medos, entre o interdito e o desejado, entre sinais que o marcam, e o destroem no que era, reconstruindo-o no que irá sendo.

Há páginas que nos marcam definitivamente: algumas são de uma violência implacável, terrível. De algum modo, estamos pisando um território em que as certezas morais são completamente abaladas. O Bem e o Mal tornam-se o elemento de um dilema e de um conflito permanentes, em que são averiguados, e testados, num pôr em causa dos ditames de que a geração anterior o haviam imbuído.

A juventude é, precisamente, isso: tudo se experimenta, e de toda a experimentação se vai fazendo o adulto que seremos. E nessa compreensão de um tempo de mudança e crise, Sinais de Fogo é um livro inesquecível.

segunda-feira, 29 de março de 2010

SOPHIA DE MELLO BREYNNER ANDERSEN

Li, não me lembro exactamente onde, que Sophia teria algum desgosto no facto de pouca importância se dar, no conjunto da sua obra, à tradução que fizera da Divina Comédia, de Dante - quando, do seu ponto de vista, essa tradução era um dos trabalhos em que mais se empenhara e um dos que considerava mais conseguidos.

Como sou um leitor que nunca se cansa da Divina Comédia (em particular do Inferno) e que nunca se cansa da poesia de Sophia de Mello Breynner Andersen, tenho, naturalmente, muito orgulho em dizer que foi pela mão da sua tradução que entrei no poema de Dante. E, já agora, que nenhuma das traduções posteriores - nem sequer a de Vasco da Graça Moura, muito boa e premiada - alguma vez se aproximou sequer do que a de Sophia me proporcionou de imediato: o acesso, a iniciação, a descoberta, o primeiro encontro, o estremecimento apavorado, o sentido do sublime.

Devo-lhe, pois, isto. Mas não só. Devo-lhe, mais do que a tradução de outrem - ainda que esse outrem seja Dante -, o amor pela sua própria poesia.

A poesia de Sophia é, toda ela, um cristal refulgente, onde a simplicidade - a enganadora simplicidade, a simplicidade que chega a parecer, a um incauto, descuidada e fácil - revela a procura obstinada da palavra exacta, a mais completa na expressão de uma certa ideia ou de um momento. É isso: de um momento, como se a beleza fugaz, a beleza que se desvanece, encontrasse nas suas palavras uma imortalidade sem arestas.

Não são sempre estes os termos que nos ocorrem a propósito de Sophia? Limpidez. Serenidade. Força. E, aos poucos, quando nos deixamos cativar, e formamos os olhos e os ouvidos que a sua poesia exige e merece, percebemos a força criativa e a cultura imensa que subjazem a esse movimento de atingir o âmago das palavras.

O segredo das palavras: onde nenhuma seja em vão para atingir o perfeito sentido.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ENCONTRO COM REINALDO ARENAS



Há algum tempo que, em vão, procuro Reinaldo Arenas. Na verdade, desde que vi um filme acerca da sua vida atormentada na Cuba de Castro, que nunca o aceitou, nem à sua homossexualidade, nem à sua obra (ambas, aparentemente, consideradas contra-revolucionárias). O filme chamava-se "Antes que Anoiteça"; a obra por mim buscada tinha o mesmo nome.

Afinal, descubro Arenas por outra via: O Assalto, romance denso e horroroso, no sentido em que o horror é a sua matéria-prima. E como em A Metamorfose, também aqui os homens, se o são, se o são ainda, se reconfiguram no limiar de uma abjecta forma animal. De algum modo, porém, o animal em que os seres humanos devieram é todos os animais: numa descrição que nunca pretende torná-los visíveis, ora aparecem referidos como porcos, ora como cavalos, ratos, insectos vários. Ora como aves predadoras, por causa dos bicos e das garras, esse elemento permanente, esse mecanismo omnipresente no texto.

Qualquer coisa no todo do romance respira o secretismo de um código: basta olharmos para os títulos dos capítulos, que, reenviando para títulos de capítulos das mais variadas obras [por exemplo: «Os Sete Selos da Canção do Alfa e do Ómega» (Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra) ou «Sobre os Sindicatos, o Momento Actual e os Erros de Trotski» (Vladimir Ilich Lenine, Obras Escolhidas)], nada têm, aparentemente, que ver com o conteúdo. Mas, se não têm, deixam uma dúvida, uma suspeita, a necessidade de ler nas entrelinhas ou de pesquisar as passagens para que remetem. E nesse código, na cifra a que O Assalto parece aspirar, é quase inevitável vermos uma alegoria do totalitarismo.

É uma sátira brutal: todos os sentimentos e afectos autenticamente humanos deram lugar ao puro instinto da sobrevivência, numa sociedade a que o chefe impôs o princípio da eficácia, negando sistematicamente tudo o que fossem nomes ou lugares de poesia, sonho ou preguiça. Um pouco à maneira de 1984, de Orwell, é a linguagem desse povo dominado que tem, primeiramente, que sofrer uma depuração, transformando-se numa novilíngua: não existe noite, mas não-noite, por exemplo, porque o Reprimeiríssimo assim decidiu.

Nesta sociedade despojada de sentimentos - que não sejam o ódio, chamemos-lhe "sentimento" -, tudo está assombrado pela obsessão implacável do narrador-protagonista relativamente à mãe, que procura por todo o todo lado, para a matar: ele não vive, não pensa, não sente senão em função do cumprimento deste objectivo, antes que se pareça demasiado com ela, antes que se transforme nela, antes que não tenha outra saída: mas saída para quê? que outra via, que outra solução poderia alguma vez haver?

Tudo o que é horroroso e perverso se condensa nestas páginas, como chave para a compreensão da fronteira entre o humano e o não-humano: mas um horror guiado pela imaginação delirante e pelo humor corrosivo de Arenas; e isso, por sua vez, a cada passo nos mostra que, mesmo quando se trata de encontrar as faces do mal e do monstruoso, se trata muitas vezes - já desde a tragédia Grega - de dar, ao resultado, a forma sublime de um objecto artístico.

sexta-feira, 19 de março de 2010

MARGUERITE YOURCENAR: MEMÓRIAS DE ADRIANO



Devo dizer que, relendo os meus próprios posts, narcisicamente, um pouco ao sabor do tempo que às vezes tenho para gastar, dei conta de que escolhi poucas obras de mulheres. Poucas? Uma única. Não que haja, nas minhas selecções, livres e espontâneas, qualquer necessidade de cumprir quotas ou qualquer compromisso ideológico; apenas penso que uma quase total exclusão de autoras não representa justa e fielmente o meu universo de gostos literários. Não o afirmo, repito, para me manter num registo politicamente correcto. Então, e Sylvia Plath? Simone de Beauvoir? E Marguerite Duras? Adília Lopes? Ou Flannery O'Conner, cujos contos me cortam a respiração?

Mas se quisesse falar do livro de que mais gosto de um autor do sexo feminino, há que confessar que escolheria uma obra que, a vários títulos, revela pouco do feminino. Ou estarei, porventura, enganado - e, sei lá, até mesmo quando veste uma personalidade de homem, para escrever, em nome dele (como narrador), uma «autobiografia imaginária», uma mulher o faz como só uma mulher seria capaz de o fazer; e talvez que a sensibilidade, a curiosidade, a própria reflexão feitas, por certa mulher, sob a capa e a imagem de um homem, sejam, ainda e sempre, uma sensibilidade, uma curiosidade e uma reflexão fundamentalmente femininas.

Em face da obra em que penso, em todo o caso, tal questão parece diminuir até à pura irrelevância. Porque se cura aqui de um livro extraordinário, seja qual for o género do autor: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.

Como se sabe, teria existido, com efeito, uma autobiografia de Adriano, a qual, porém, nunca chegou até nós: mas pela voz de Yourcenar, Adriano, «avistando já o perfil da morte», inicia uma carta a seu filho (o futuro imperador Marco Aurélio), em que nos vai abrindo, uma a uma, as portas da sua intimidade, numa melancólica viagem pelo seu passado, pelos seus amores, pelos seus remorsos. O saber de que este texto está imbuído e a delicadeza retórica da sua expressão fazem com que nos embrenhemos com um deleite que muito poucas outras obras proporcionam. Assim, de repente, sem uma análise profunda, sou capaz de me lembrar de outras quatro, não mais: Em Busca do Tempo Perdido, À Espera no Centeio, Viagem ao Fim da Noite e O Inferno, da Divina Comédia; por uma ou outra razão, ou por várias razões simultâneas, são, todos eles, livros com esse poder de encantamento: de levar o leitor a esquecer inteiramente tudo o que não é a página que no momento está lendo; de o levar a tornar-se o próprio livro que segura entre as mãos. (Talvez encontrasse mais casos: mas não tão segura e imediatamente como aqueles que referi).

Alguém dizia, uma vez, que Memórias de Adriano é uma obra que precisa de um tempo certo, uma maturidade, uma disponibilidade, uma paciência muito particulares da parte do leitor. Quem o disse (sei exactamente quem foi, aliás: Ana Drago, numa entrevista acerca dos livros da sua vida) precisara de começar, re-começar, em diferentes momentos e situações, por cinco vezes, até ter autorização para entrar, se prender às palavras e seguir o rio. Sucede. Haverá desacertos, equívocos, falsas partidas. Mas vale a pena esperar. Vale a pena tentar uma vez mais. Se há livros que merecem toda a paciência e todo o tempo do mundo para que se descubra o tempo certo para nos entregarmos a ele, este é um deles.

terça-feira, 16 de março de 2010

KEN FOLLETT: OS PILARES DA TERRA


Gosto de descobrir de que autores ou de que obras gostam os autores de que eu gosto.
Não me foi indiferente saber que Gonçalo M. Tavares foi desde muito novo apanhado pela baleia branca: Moby Dick, a monumental obra-prima de Herman Melville.

Também a primeira coisa que me vem a talhe de foice, em relação a Os Pilares da Terra, é tratar-se de um livro que me foi apresentado por José Luís Peixoto. (Na televisão, é claro, não pessoalmente, que o não conheço).

Mas muita coisa me parece admirável no hipertexto deste romance - a principiar logo por um prefácio em que o autor, Ken Follett, descreve como, à margem de qualquer campanha, ao arrepio de todo o marketing, o livro seguiu um curso muito próprio e muito inesperado, tornando-se paulatinamente conhecido, divulgado numa uma espécie de boca-a-boca, ou de leitor-a-leitor, que ninguém condicionou, nem controlou, nem manipulou. Nem tão-pouco se previa. Ele próprio não tinha consciência desse movimento - porque, aparentemente, as editoras se encarregam de apresentar tal género de dados de um modo suficientemente obscuro e capcioso para que os autores não percebam muito bem até que ponto estão a vender... -; de repente, todavia, quase por acaso, descobriu: o seu livro tornara-se um best-seller: algo como um secreto best-seller, que não vinha em qualquer lista nem era objecto da recomendação especial de qualquer crítico de nomeada.

O facto de Ken Follett ser, de há muito, um escritor de livros policiais e de espionagem, não fazia prever que a sua técnica de manter o suspense pudesse ter um tão feliz resultado nesta mudança do tema, do tempo, do espaço: porque Os Pilares da Terra tem, como objecto, a multifacetada história da construção de uma catedral, na Idade Média; há um rei, que acaba destronado (Stephen, seguido de perto por uma pretendente ambiciosa, Maude, que sobe ao trono, e o perde, em sucessivas e cruéis guerras civis, esperando-se que Henry, seu filho, venha a poder ser o rei que sintetiza e pacifica); há cavaleiros, monges, pedreiros, carpinteiros, prostitutas, feiticeiras, menestréis, que se vão ligando em minúsculos universos que, por sua vez, se ligam entre si, ou que se cruzam, e se desligam, e se descruzam, para se reencontrar mais tarde.

Não há, sequer, um mistério: não é, pois, um policial medieval, à maneira de O Nome da Rosa. E, não obstante, o ritmo (porque não sei como lhe chamar de outro modo) é alucinante: qualquer coisa semelhante a um vício é responsável por não podermos arrancar os olhos às páginas, às cadeias de acontecimentos, à maneira como - à imagem, aliás, da catedral - o romance se vai edificando numa grandiosa harmonia, que a cada momento enfrenta assaltos, e incêndios, e azares, e vinganças: no passo em que suspirávamos, prestes a realizarmo-nos, antevendo a felicidade de um arranjo feliz, vemo-lo ser totalmente destruído; «E agora?», perguntamo-nos, respirando, a custo, sob os escombros: «Recomeça-se do nada? Vão ter de refazer tudo do início?»

Muitas vezes, deparamos com equívocos. A elaboração dos caracteres claudica: uma personagem que nos prometia certa profundidade acaba por se esvair na pura superficialidade; onde pensávamos que poderia revelar-se ambígua, dotada de um lado mau e de um lado bom, define-se, afinal, numa única nota: completamente boa, ou completamente má. (Penso em Alfred, por exemplo, o «irmão postiço» de Jack).

E, contudo, a leitura da obra (isto é, dos dois volumes da obra, a que se seguem outros dois volumes acerca da história dos descendentes destas personagens, vários anos volvidos) é intensa, arrepiante, aterrorizante. Tecnicamente, portanto, o romance é eficaz, é rápido - e mesmo as cenas de amor ou de sexo, tão difíceis na literatura portuguesa, ao que se diz, são aqui perfeitamente aceitáveis. Do ponto de vista histórico, o romance é, no mínimo, correcto. A Idade Média tem uma dimensão sombria, violenta, maniqueísta, perversa, animal, que me parece capturada ao lado de indícios de carinho e amor, inteligência, sensibilidade estética, cultura. As personagens femininas são fortíssimas e inesquecíveis, de uma grande determinação e de uma generosidade incompreendida.

Vejo (e oiço) José Luís Peixoto dizer-nos que é um grande livro, e entendo-o. Desculpem-me a pressa, como se estivesse a despachar este post: tenho de voltar ao segundo volume...

domingo, 14 de março de 2010

À VOLTA DE TÍTULOS



Mas há, evidentemente, qualquer coisa de pessoal na maneira como um título nos agarra, ou, pelo contrário, nos agride, e que tem que ver com a experiência própria de cada leitor: cruzamentos e coincidências que despertam e surpreendem, em cada um, memórias e sensibilidades carregadas e prontas a explodir à menor das faíscas.

Já aqui falei sobre três títulos que me parecem achados perfeitos. O Homem sem Qualidades . Ó. Dramaticamente Vestida de Negro. Sê-lo-iam para todos?

Em Busca do Tempo Perdido é, em si mesmo, um nome muito forte e bonito, embora o prefira em francês: À la Recherche du Temps Perdu - que, todavia, nunca agradou ao seu autor, Marcel Proust, «em busca» de outra coisa qualquer.

Nenhum, porventura, me parece tão conseguido como Um Estranho numa Terra Estranha, que li em adolescente e, há algum tempo, uma amiga em suspenso me tornou a emprestar e me agradou reler. (Não tenho "ex-amigos". Mas há, por vezes, amizades que, devido ao desgaste, ao equívoco, à diferença de personalidades ou de interpretação dos factos, acabam ficando entre parêntesis por algum tempo...).

The Catcher in the Rye parece-me um excelente título, que não se consegue verter em português. Os Detectives Selvagens também está prenhe de promessas. A Náusea é um nome que choca, talvez, mas a que, inegavelmente, não conseguimos fugir. Fascínio/repelência, belo/horroroso.

Atrai-me Viagem ao Fim da Noite. Dez Dias que Abalaram o Mundo condensa, de um modo admirável, a revolução sobre que o livro se debruça. Crime e Castigo é um livro que compraria só por se chamar como se chama.

Uma Abelha na Chuva é este título belíssimo, de uma poesia melancólica. Sinais de Fogo é um nome suficientemente intrigante. O Livro de Areia também.

A Casa da Morte Certa parece - enganadoramente- reenviar para um policial, com um mistério que chama por nós a partir de uma certa casa. É certo que grandes livros possuem títulos, deste ponto de vista, completamente errados. Gente Feliz com Lágrimas é de um mau-gosto atroz e atroador. Claro, estamos no plano do que é estritamente pessoal.

Fogo Pálido é encantador. Mais belo, ainda em inglês, ora pronunciem lá: Pale Fire. Ou Por Quem os Sinos Dobram, não concordam? Ou Os Passos em Volta.

Porventura, estou enganado. Alguns títulos tornaram-se tão perfeitos para mim somente depois de haver conhecido a obra, e porque, conhecendo-a, deixei de ser capaz de pensar naquele título em abstracto, sem o associar de imediato ao conteúdo, da mesma maneira que tal romance já não é nem seria concebível separadamente do nome que eternamente vestiu e para sempre se lhe adequou.

sábado, 13 de março de 2010

FERNANDA BOTELHO: DRAMATICAMENTE VESTIDA DE NEGRO



Um título é muito importante. Corrijo: é fundamental.
Trata-se da parte da obra a que temos imediata e publicamente acesso, isto é, antes de a tornarmos unicamente nossa; mais: trata-se da pele - daquela superfície a partir da qual decidimos se, de facto, vale a pena tornar unicamente nossa a substância. (Comprar, levar, abri-la e amá-la).

Livros há que poderíamos comprar mesmo que não soubéssemos nada acerca deles. Só porque o título enuncia um programa que nos fisga. Ou porque nos surpreende admiravelmente. Um exemplo do primeiro caso: O Homem sem Qualidades. Um exemplo do segundo: Ó.

Acerca de Fernanda Botelho, tenho uma história para contar que tem que ver com a forma como o título é, muitas vezes, a antecâmara a partir da qual nos entusiasmamos, ou permanecemos indiferentes, ou nos afastamos.
Antes de conhecer a sua obra, ocorreu, com esta, o meu primeiro contacto sob a forma de um título que me caiu nos olhos: Esta Noite Sonhei com Brueghel. E, apesar de gostar tanto da pintura de Brueghel, odiei de tal forma o título, pedante na sua remissão directa, gratuita e excessiva para a cultura e para a sofisticação, que se começou a elaborar então, inconscientemente, o meu preconceito contra Fernanda Botelho.

Nós somos assim. Eu sou: imponderado, com ideias calcificadas por causa de algum rumor ou de algum título que me tenha caído mal, ou de uma frase, ou de uma interpretação pouco cuidada. Redime-me, de certa forma, a capacidade para, quando o destino me apresenta uma segunda oportunidade, repensar o que já parecia enraizado, rever o que vira precipitadamente, reconstruir a perspectiva, acabar apaixonando-me, se for caso disso, pelo que, num início errado, começara por detestar ou desprezar.

Assim sucedeu comigo como leitor de Fernanda Botelho. Felizmente, graças a um outro título: Dramaticamente Vestida de Negro. Há, neste, qualquer coisa que fascina: o apelo de um segredo ou de um mistério, como se se tratasse de uma novela policial, o apelo de uma dimensão sombria ou, pelo contrário, histérica, como se o «dramaticamente» do título evocasse uma representação cabotina e excessiva, um qualquer "overacting".

O meu amor pela obra de Fernanda Botelho tem, depois de uma falsa partida, esse maravilhoso recomeço. Porque Dramaticamente Vestida de Negro é um romance maior acerca da solidão e da idade, com uma construção cerebral, que se observa na "gestão" (palavra horrorosa, reconheço!) que a narradora faz do que quer ir contando ao leitor, de modo que haja sempre um veio que não descobrimos senão no momento certo; mas, ao mesmo tempo, essa construção cerebral, friamente calculada para nos ir surpreendendo, não abafa a emoção - e esse equilíbrio entre o pensamento e a sensibilidade, a que, como sabemos, toda a literatura deve tender, porém, na prática, só os grandes escritores conseguem realizar, fez-me, como um cientista que houvesse descoberto um dos pilares do universo, procurar e ler, um a um, todos os romances de Fernanda Botelho. De alguns, gostei menos. (A Gata e a Fábula não veio a ser um dos meus preferidos). De outros, gostei muito. (Acho primoroso Lourenço é Nome de Jogral, mau-grado algum cepticismo em relação ao título). Mas, de nenhum, gostei ou gostaria tanto como de Dramaticamente Vestida de Negro: Ah! Os primeiros amores. Os amores que nenhum outro substituirá...

terça-feira, 9 de março de 2010

NUNO RAMOS: Ó

A EXPECTATIVA.

Este era o livro impacientemente aguardado. O mais ansiado durante os últimos meses. Por que razão? Oh, por várias: porque devo reconhecer que pouco conheço de entre os novíssimos da literatura brasileira, e me mantenho curioso; porque todas as abordagens, em que ia tropeçando, feitas a esta obra - Prémio PT em Novembro de 2009 -, davam conta de uma certa perplexidade em relação ao género: de que se tratava exactamente, afinal? Não tanto um romance, não crónicas também, nem contos, nem propriamente ensaios, mas algo que se representaria num cruzamento dessas possibilidades, sem se acantonar especificamente em nenhuma, sem se esgotar em qualquer delas, antes fluindo entre categorias, numa recusa de limites pré-fabricados; porque me remetiam explicitamente para Proust e Montaigne, dois escritores que admiro: só o facto de que um autor contemporâneo os conheça e os reivindique como mestres constitui, do meu ponto de vista, um ponto a seu favor. E, «last but not the least», porque tive a oportunidade de debicar algumas entrevistas concedidas por Nuno Ramos - em jornais, revistas, na rádio - e, de todas as vezes, deparei com um homem tímido, perspicaz e sensível.
Era este, portanto, o meu estado. Por causa de tal estado, aliás, não foram poucas as vezes que entrei, ultimamente, em livrarias, só para perguntar: «Já tem Ó?». (É o título da obra). E devolviam-me sempre a pergunta: «Ó?!», sem saber se eu estaria a brincar.
Finalmente, confesso, a publicidade e o marketing terão tido o seu papel no desencadear do meu interesse. Não tanto o isco do prémio - borrifo-me para as obras premiadas -, mas a atmosfera de estranheza que envolvia o livro, a começar pelo extraordinário título.

O OBJECTO QUE FOLHEIO

Tenho-o, por fim, nas minhas mãos. É um objecto de culto. A capa é discreta, as folhas cheiram agradavelmente. Mergulho todos os meus sentidos neste livro. E, para dizer a verdade, até a cadência da sua escrita no português do Brasil, familiar e distante, me comove e retém.

A PERPLEXIDADE

Perceberam que o livro me vem encantando. Entendo a perplexidade, embora, em rigor, essa diluição e dispersão por todas as formas possíveis não seja uma novidade. Carlos de Oliveira, por exemplo, em Finisterra, procurava já, um pouco, o mesmo tipo de libertação da voz, embora mantendo um fio condutor vagamente romanesco. Mas também Herberto Hélder, em Os Passos em Volta, usa de um pendor similarmente flutuante e desobediente, ao longo da construção de textos que, sendo um pouco de tudo, entre a poesia e a reflexão filosófica, a evocação ou a narrativa, nunca são definida e definitivamente coisa alguma.
Na obra de Nuno Ramos há qualquer coisa de jogo. Ora se, como lembra Nietzsche, para uma criança o jogo é a coisa mais séria do mundo, aqui, pelo contrário, ao distanciar-se leve, leve, muito levemente do seu próprio jogo, o que Nuno Ramos vai urdindo torna-se um saboroso exercício de ironia. Ao mesmo tempo, de mitologia: da mesma maneira que, ao criar a figura do Bom Selvagem, Rousseau nos previne que a não devemos entender como um facto histórico, mas como um "mito", cuja função seria heurística, mais para nos ajudar a pensar e a compreender do que para nos informar, também em Ó a figura (entre outros exemplos) da comunidade silenciosa, sem linguagem, em face dos primeiros homens a usar a fala, serve sobretudo para um irónico testar de hipóteses com que não nos comprometemos, uma criação de ideias e de conceitos, o engenhoso explodir de possibilidades que sejam clarões, aventuras e risos do acto de pensar.

A DESCOBERTA DE Ó: A INTIMIDADE

Pelo que a leitura de Ó tem, realmente, qualquer coisa de aventura. A surpresa é constante. A felicidade da formulação deixa-nos sem fôlego. Principia assim: «Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes.». E mesmo que este corpo possa ainda ser um corpo ficcionado, só longinquamente aparentado com o corpo real do autor, a verdade é que o modo como é exposto cria, no texto, um elemento de intimidade que ora nos choca, ora nos comove, mas nos cativa sempre, como se se tratasse de observarmos em nós próprios a degradação a que o nosso próprio corpo está sujeito, com suas excrescências, seus fluidos, seus odores, transformações, perversões. Um pouco como Samsa que se descobre feito insecto, esta é a obra mais dolorosa que conheço acerca da metamorfose (que cada um de nós sofre) no insecto derradeiro: a velhice. É uma intimidade física, de cada um com o seu corpo e de cada corpo com o corpo de outrem, a mulher, a mãe, a multidão que nos envolve e a que não podemos escapar.

A DESCOBERTA DE Ó: FICÇÃO E COMICIDADE

Há, frequentemente, uma aparência de "informação" credível nestes textos: em dado momento, observando e ligando pormenores imprevisivelmente ligáveis, Nuno Ramos pára, como se pousasse a caneta, para nos contar um episódio verídico; algo assim: "Isto faz-me lembrar, por exemplo, a história de Ancona Lopes". Ou seja, arranca num tom que conserva toda a verosimilhança. Querem confirmar?

«Vale a pena lembrar uma estranha teoria da inexpressividade, que teve seus dias de glória nos anos 50, em São Paulo. Ancona Lopes, o famoso director do Cambuci, bairro próximo ao centro de São Paulo, oferecia a seus alunos, depois da aula, um princípio da arte de representar que resumia esta teoria à perfeição.».

Nada, pois, a criticar relativamente ao formalismo quase académico desta introdução. Mas é no prosseguimento, e à medida que nos confrontamos com os pormenores rocambolescos e impagáveis da história, que Nuno Ramos nos narra, do pobre Ancona Lopes, que nos apercebemos do logro. Nenhuma das referências é verídica. A comicidade surge, aqui, do facto de uma mais do que improvável fantasia aparecer enquadrada por um cuidado aparelho de pormenores realistas, históricos e biográficos.

CONCLUSÃO

Serve o exemplo referido para que se tenha consciência de que, da mesma forma que o autor varia de tom, de estilo, de género, sem pedir licença, numa amálgama em que tudo são conexões brilhantes e ágeis, também para o leitor de Ó se trata de uma experiência de mutabilidade de estados de espírito: ainda nem bem a minha melancolia se completou, e é já com a angústia que tenho de me haver, a qual interrompo com uma brusca gargalhada que, por sua vez, se transformará num subtil sorriso. Perco-me, reencontro-me, disperso-me, torno a perder-me. Não sei onde estou, mal me lembro de quem sou. Experimento-me outro. Sigo as curvas e a degradação deste corpo desconfortável consigo mesmo. Sou eu? Este corpo parece-se muito comigo. Embora às vezes o estranhe. Aliás, tanto o estranho quando se não parece, como o estranho por tanto se parecer.

sábado, 6 de março de 2010

SHAKESPEARE: UM PROGRAMA DE VIDA SEGUNDO POLÓNIO

Sigo, nesta transcrição, a tradução de Hamlet proposta pelo Dr. Domingos Ramos.

O conjunto de conselhos que Polónio oferece a seu filho, Laertes, aquando da partida deste para França, não constitui, por si só, um admirável programa moral de vida?

«Fixa na tua memória estes conselhos: não dês língua aos teus pensamentos e nem executes pensamentos que não tenhas reflectido. Sê afável, mas evita por todas as formas ser banal. [Esta, talvez a minha predilecta: "Sê afável, mas evita por todas as formas ser banal.»]. Quando tiveres experimentado a afeição dos teus amigos, engasta-os na tua alma em círculo de aço; mas não prostituas os teus apertos de mão a todo o desconhecido, a todo o camarada indiferente. Não te metas em disputas; mas uma vez entrado nelas, aguenta-te de modo que o teu adversário tenha medo de ti. Presta a todos os teus ouvidos, mas a poucos a tua voz; aceita a opinião de todos, mas reserva a tua. [...] Não emprestes nem peças emprestado, porque emprestando, perde-se quase sempre o dinheiro e o amigo, e pedir emprestado embota o fio ao espírito de ordem. Sobretudo, sê sempre verdadeiro para contigo mesmo e disto seguir-se-á, como o dia segue a noite, não poderes tu ser falso para com ninguém. Adeus! que a minha benção faça frutificar em ti estes conselhos

sexta-feira, 5 de março de 2010

WILLIAM SHAKESPEARE: HAMLET

Eis um bom início para um texto acerca de Hamlet: a primeira vez que o li, fiquei extremamente frustrado. Não podia ter sentido um desapontamento maior. Entendam isto, por favor: esperava imenso de uma peça tão enaltecida, tão unanimemente aclamada. A minha leitura fora precedida por referências fortes, imagens marcantes, uma ideia com algo de mítico - e que podemos resumir, superficialmente, na cena que todos associam de imediato a essa obra: Hamlet, de caveira na mão, entoando as célebres e enigmáticas palavras: «Ser ou não ser: eis a questão!». Esperava, pois, algum tipo de arrebatamento espiritual.

Ao invés do esperado estremecimento fundo, ao invés de sentir que entrava pelo corredor de um «clássico», de uma tragédia nuclear da literatura Ocidental, deparei-me com um entrecho muito fraco, frequentemente ridículo (como em quase todos os momentos em que os homens avistam o espectro) e, como escreveu Jorge de Sena, expondo-se numa verdadeira pirotecnia verbal, tão grandiloquente como pouco convincente.

Na altura, faltava-me - entre outras coisas - saber que um clássico raramente deve ser lido em si; um clássico não pode ser abstraído das significações que atraiu e incorporou, como se se tratasse de um objecto que pudéssemos isolar num frente a frente connosco. É que sobre o texto propriamente dito, o texto em si, o tempo foi depositando subtis camadas de interpretações que o enriqueceram, o completaram e o transformaram. Há sentidos que só poderemos perceber com uma atenção amadurecida, um cuidado que se tenha vindo a cultivar. O tempo fez, de certos diálogos, de certas frases, incontornáveis mitos. E só quando nos dotámos das armas e dos instrumentos necessários, quando nos apetrechámos de tudo quanto nos ajudará a ler nas entrelinhas e a revelar sentidos ocultos, só quando estamos cultural, estética, histórica, psicológica e filosoficamente preparados para reenfrentar algo como Hamlet (e eu não sinto que o esteja, ainda...), é que ele poderá afirmar-se a nossos olhos como aquilo que é, ou em que se tornou: uma tragédia sublime.

Muitos pensadores tiveram algo a dizer sobre Hamlet. Prova de que o(s) problema(s) que sustenta(m) a obra, pela sua profundidade, permite(m) diferentes leituras e infinitas discussões. Qual a natureza da sua relação com a mãe? Será o conflito de Hamlet com o irmão de seu pai, que desposa sua mãe, uma máscara do complexo de Édipo, tal como Freud defendeu?
E que dizer da sua loucura? Não é verdade que, mesmo que tenhamos indícios para a encarar como um embuste e uma estratégia, contém um elemento de inegável autenticidade e, num certo sentido, de extrema lucidez?

Gosto de pensar em Hamlet como sendo um exemplo da figura do "intelectual", típica da nossa cultura.

O intelectual é, antes de mais, o sujeito do pensamento: mas de um pensamento que, pela sua penetração e radicalidade, acaba incompreendido pelos demais, os que vêem nele uma certa inocência, uma certa alienação e a perpétua impotência para se prender ao real e intervir eficazmente; palavras ocas; conhecimentos aéreos: o intelectual é o que acusa e denuncia, sim, mas suscitando mais facilmente o riso do que a adesão.

Todavia, o intelectual é o que nunca se cala: reflecte e dá voz aos seus pensamentos, numa melancolia perfeitamente hamletiana, enquanto as catástrofes se sucedem e o mundo deflagra. É o que interroga a vida, a morte, o bem e o mal. É o que se questiona sobre a condição e a finitude. É o que fala de mais e não age.

Hamlet, como bem sabemos, agirá, a seu tempo. E, por sua vez, agirá de um modo implacável e terrivelmente eficaz. Mas ao longo de toda a tragédia, e até ao seu desenlace fatal, é um jovem que ora não compreendemos, ora compreendemos ao ponto de com ele nos identificarmos. E, nessa oscilação, num ou noutro extremo, é sempre aquele que procura enunciar os seus sentimentos contraditórios e complexos, ao mesmo tempo que procura o caminho da vingança, ou seja, da passagem da consciência ao acto.

Lê-lo é, de cada vez que o torno a ler, uma compreensão mais profunda de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Ou do intelectual. Ou, realmente, do Homem. Ou, afinal, de mim próprio.