sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

HOMENAGEM PÓSTUMA A PROPÓSITO DE UMA HOMENAGEM ANTE-PÓSTUMA

J. D. Salinger faleceu, julgo que na passada 4ª-feira.
No domingo anterior dedicara-me a invadir o meu irmão, lendo-lhe precisamente passagens de The Catcher in the Rye, que tinha acabado de comprar, ou re-comprar, muito pouco tempo antes.

Pela mesma altura, sensivelmente, escrevera um post sobre esse autor e esse livro que considero de uma sensibilidade ímpar.

Fico feliz por ter comprado o livro e escrito o "post" antes da morte de Salinger. Sem a prever. Não fiz parte daqueles que se lembram de um autor quando e porque este morreu.

Há coincidências espantosas. Que, pois, esse meu interesse espontâneo, gratuito, que essa memória que não foi senão a saudade da personagem (e narrador), que esse meu regresso à obra, que me surgiram do nada, a propósito de coisa nenhuma, sejam a minha homenagem
a J. D. Salinger.
Até sempre.

sábado, 23 de janeiro de 2010

J. D. SALINGER: THE CATCHER IN THE RYE


Escrevo o texto, propositadamente, numa espécie de deserto cortado por uma ilustração única e diminuta. O homem que nos sorri dessa fotografia antiga é J. D. Salinger, o qual, desde a publicação e quase imediato sucesso da sua obra-prima, preferiu manter-se num estado prático de reclusão. Para quê, pois, expor, mais do que o estritamente necessário, um autor que recusa a exposição?

Terei de falar novamente do meu primo? Claro que sim. Como este estudava, então, algures em Inglaterra, conhecia bem um livro de leitura obrigatória para a aprendizagem da língua inglesa: The Catcher in the Rye. Apresentou-mo, portanto.

Comecei por lê-lo em inglês. Percebi, desde as primeiras páginas, que aquele romance escrito nos anos cinquenta permanecia actual; mais: de uma novidade e uma originalidade absolutas. Mais tarde, comprei-o em português; hélàs!, emprestei-o; perdi-o de vista. Ontem, comprei-o de novo, numa tradução que lhe oferece o nome suspeito e pouco feliz de À Espera no Centeio.

A forma revela-se um achado: o narrador é Holden Caulfield, um adolescente de dezasseis anos. E que, de facto, escreve como um adolescente de dezasseis anos. A linguagem rebelde e aparentemente pouco sofisticada de Caulfield, sustentada nos pilares que são as palavras obscenas e violentas do léxico adolescente em qualquer tempo e em toda a parte, vai-se mostrando o meio perfeito para a apresentação da sua perspectiva - que é, naturalmente, a perspectiva de, que esperavam?, um adolescente de dezasseis anos. Do seu ponto de vista, os velhos são deprimentes, os adultos são em geral pessoas entediantes, as exigências e expectativas, de que o cercam, completamente falhas de sentido.

Este distanciamento em relação ao mundo que descreve, no entanto, minuciosamente, assume-se como um veio poderoso de humor. Reconheço, aliás, aquele humor ácido. Tenho um filho de catorze anos e, acreditem, os adolescentes olham hoje para as coisas com a mesma incompreensão irónica que há cinquenta anos.

É, num certo sentido, um livro que nos resgata: embora Caulfield seja, para nós, o «estrangeiro», isto é, o objecto estranho que vai lidando com os seus dias através de decisões erradas e perigosas, a sua tentativa de comunicar connosco, leitores, aproxima-o, faz-nos entrar em si, fá-lo entrar em nós. Nasce uma telepatia. Como se, dentro de cada um de nós, um adolescente que nunca morreu despertasse e estabelecesse o contacto: sim, Caulfield, compreendo-te bem, o sistema é tramado, as opções que se te abrem são todas igualmente más, mais vale seguir essa espécie de instinto louco, duro, aventureiro e generoso.

Mas mais do que isto, como é evidente, Caulfield, sob o azedume do seu riso, sob a ironia tensa, a pura propensão para o disparate (mais, até, do que para a revolta), torna-se uma figura comovente. Veja-se o diálogo com a irmã, um momento que se crava com toda a força numa zona vulnerável do peito do leitor.

Não me importo de emprestar este livro a outra pessoa, porque Salinger merece que o conheçam.
De resto, é claro, eu iria comprar imediatamente um novo exemplar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

INJUSTIÇAS

Temo ter sido injusto, no post em que procurava lembrar e referir os marcos do meu passado como aprendiz de leitor.
Então, e sobre Júlio Verne, nem uma palavra? Pois havia uma colecção bem bonita, com livros de capas apetitosas, coloridas: sei que me ofereceram, em certo aniversário, Atribulações de um Chinês na China, que li com algum entusiasmo. Sei que havia, na minha cabeceira, A Volta ao Mundo em 80 Dias.

Então, e sobre Mark Twain, nada a dizer?
Como é possível?

Talvez ainda antes de Os cinco e de Os Sete, Tom Sawyer foi o livro que me conquistou: tratava-se de um rapaz hiperactivo. (Sabia eu lá na altura o que era isso! Aliás: o próprio Mark Twain não fazia ideia, na época em que escreveu simplesmente sobre um puto irrequieto e aventureiro, que possibilidades diagnósticas reservaria o futuro). Esse garoto dotado de uma imaginação inesgotável, que o mundo dos adultos não era capaz de digerir, agarrou-me, prendeu-me, levou-me consigo.

Depois li Huckleberry Finn; apreciei-o também devidamente, mas não como a Tom Sawyer, ah, não, nada como Tom Sawyer - e a sua temível tia Polly; o irmão perfeito, invejoso e delator (até porque eu tinha um irmão perfeito, invejoso e delator); a Becky, por quem nos apaixonámos os dois ao mesmo tempo, Tom e eu; o Huck; o preto Jim. E, claro, o malvado Injun Joe!

Recordo as cenas como se as relesse, Deus do céu!, desde aquela encenação que Tom faz, logo num dos capítulos iniciais, para persuadir os seus amigos de que tarefa que a tia o obrigara a desempenhar era, na verdade, um prazer - o que teve como resultado que lhe pagassem (em berlindes ou ratos mortos atados por um fio) para a realizar em vez dele -, passando pela sua inesquecível e malograda tentativa de suicídio por amor, até aquela outra, já no fim, que nos oferece o dramático confronto com Injun Joe, que tantos pesadelos me provocou...

Tom Sawyer e Huckleberry Finn são livros, perdoem-me a expressão detestável, infanto-juvenis como se não fazem já. Maduros, interessantes, profundos - sem cedências. Uma porta aberta para o gosto de ler.
Esqueci-os?
Imperdoável.

sábado, 16 de janeiro de 2010

ROBERTO BOLAÑO: 2666



Já há muito não subo a este blogue. Hesito na palavra passe, sinal mais do que evidente de que não tenho recorrido frequentemente a ela.

Não sei bem sobre que falar. Mas, afinal, sei. Isto é, de miríades de possibilidades que respiro (e se me referisse a Camus, de que se comemoram cinquenta anos da morte?, e se me referisse a John Fante, escritor semi-maldito que acabei de descobrir?, por que não a um português, digamos Nuno Morais, poeta malogrado por cuja poesia me apaixonei?), há já uma possibilidade mais forte do que as outras, que se define e torna nítida. No momento em que teclo estas palavras, já ela se esclareceu e tornou real. Bolaño. 2666. É isto.

De Roberto Bolaño, autor chileno, conhecia, quase por acaso, um livro chamado Os Detectives Selvagens. Se quisesse reduzir 506 páginas a dois adjectivos, escolheria estes: originalíssimo e desigual.

A linguagem é extraordinária; a narração principia e, durante muito tempo, mantém-se numa crueza hilariante; as personagens multiplicam-se na sua riqueza e autenticidade. Mas o problema é, em parte, precisamente esse: demasiadas personagens, implicando universos diversificados, num labirinto em que nos perdemos, sem dúvida interessante mas, é verdade, nem sempre igualmente
interessante. O entusiasmo do leitor vai-se esbatendo: cede a vez ao cansaço e à confusão.

O livro de que vos quero falar, todavia, é outro. 2666 tem uma história subjacente: avisado da proximidade da morte, Roberto Bolaño decidiu escrever um longo romance, de forma a que a sua família pudesse ficar amparada. Dividiu o gigantesco texto em cinco partes; transformou-o, portanto, em cinco romances, que pediu ao seu editor que publicasse em separado. Assim, durante pelo menos cinco anos, a mulher e os filhos poderiam sobreviver à custa dos direitos autorais...
Foi, porém, o próprio editor, homem inteligente, sensível, desrespeitador e de bom gosto, que percebeu que esta obra enorme não podia, sem prejuízo, ser espartilhada. Talvez mais tarde - mas numa primeira fase, tornava-se absolutamente imprescindível que o leitor tivesse aceso à sua unidade intrínseca.

2666, de 1025 páginas, é, portanto, o género de obra que costumamos referir como um «romance falhado», não querendo com isso propriamente menosprezá-la, mas tão-só caracterizá-la enquanto tentativa impossível de abarcar a totalidade. Musil, com O Homem sem Qualidades, e talvez também Proust, escrevendo Em Busca do Tempo Perdido (sem que em qualquer caso se trate de diminuir a grandeza ou o génio criativo que revelam), seriam autores de similares esforços para dar conta de todos os pormenores, todos os sujeitos, todo o passado, todo o presente e todo o futuro, num sistema universal e particular, aberto e fechado, um texto inconclusivo mas concluído.

Deparamos, em 2666, com a mesma diferença de universos («registos», como agora se diz) que em Os Detectives Selvagens: mas existe aqui, de algum modo, uma tensão equilibrada. Cinco partes que se lêem como romances diferentes, mesmo que a princípio a unidade ou o fio condutor que os liga pareçam ténues, conseguem encaixar-se, a prazo, como as peças de um gigantesco puzzle onde não temos, nem esperamos ter, senão no fim, uma visão de conjunto. A dispersão perturba menos, é quase uma condição organizadora de um todo que tende fatalmente a dispersar-se nas suas partes.

A narração de Bolaño é brilhante. O sarcasmo está sempre presente, como uma faca de ponta-e-mola; a noção do ridículo é uma constante que, todavia, nem por um momento faz com que nos distanciemos das personagens, ou deixemos de sentir fundamente a sua tristeza. O enigma que, de certo modo, se transforma em diferentes enigmas - onde está Archimboldi, quem comete a série de violações, quem comete a série de sacrilégios, e que terão estas interrogações que ver umas com as outras - permanece sempre audível e interessante, motor surdo de um suspense que subsiste às variações de ritmo.

Meu primo - de quem tanto aqui tenho falado, e de quem falarei porventura ainda mais, agora que sei que, lá da longínqua América, se foi tornando um leitor atento deste blogue - recebeu, no Natal, um exemplar deste livro. Iniciou-o: «Tem graça», afirma. Mas torce ainda demasiado o nariz. Há aspectos que lhe parecem forçados, como um experimentalismo bacoco em prol da originalidade pela originalidade.

Não digo que não leia, aqui ou ali, algo que pode ser atribuído a uma certa pose intelectual, a um certo brilho desnecessário, a uma originalidade vã. O que digo é que nada disto, nada, retira à progressão e à grandeza da obra, à sua ambição totalitária e ao pormenor da sua multiplicação por ângulos diferentes, às personagens, às situações, à comédia, à tragédia e ao mistério, uma grama que seja de sentido e força.

Não se pode fechar o sistema. Qualquer tentação e tentativa de o fazer não pode senão concluir-se num falso fim e num falhanço. Nevertheless, há falhanços magníficos. É o caso.

sábado, 2 de janeiro de 2010

COMO SE FORMOU UM PROFISSIONAL DA LEITURA



Não me lembro, numa primeira infância, senão dos livros muito coloridos de Noddy e de uma excitante edição de O Sítio do Pica-pau amarelo. Estava em Moçambique, na casa do meu tio e, lá em baixo, para onde eu gostava de me escapar sozinho, penetrava na gruta mágica de Ali-Baba, que era a salinha de brinquedos que o tio António mandara fazer às netas, a partir de um antigo galinheiro: perdia-me entre brinquedos e livros.

Mais tarde, com oito ou nove anos, já em Lisboa, recordo um volume magnífico - talvez no português do Brasil -, que reunia Robin Hood, Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, do qual retenho perfeitamente o poema da Morsa e do Carpinteiro, que devo ter relido vezes sem conta, surpreendido, divertido, fascinado.

A seguir, de volta a Moçambique, para além das leituras proibidas que pescava secretamente entre as estantes do meu irmão - O Homem, sobre um primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que agora faria sentido reler, e A 25ª Hora -, o que marcou decisivamente o meu gosto pela leitura foi a descoberta da senhora dona Enid Blyton: Os Cinco, é claro, mas, mais do que esses, Os Sete: o clube que formavam, as excursões em bicicleta e os deliciosos «lanches ajantarados» que as mães lhes preparavam, ou as merendas, descritas com todo o detalhe, que levavam nas viagens. Devorei Os Sete. (Hoje, nem me lembro senão de um ou dois deles, um tal Pedro e uma tal Bárbara. E um cão, que era o Toy!)

Com alguma curiosidade, pergunto-me qual foi o primeiro livro literariamente excelente que li, aquele que terá marcado o despertar do meu gosto, o meu prazer, o meu vício, a minha paixão pela leitura. Estou em crer que pudesse ser O Idiota. (Sempre era Dostoievski!). Estava na mítica estante do meu irmão, e este detestava-o, com aquela sua arrogante necessidade de pôr em causa tudo quanto fosse consagrado e respeitado. «Génios tão indiscutíveis», reclamava ele, sarcástico, «e repara como logo da primeira para a segunda página entram em contradição». Era verdade. Não me lembro de que contradição se tratava, algum pormenor na descrição do vestuário, mas lá estava, aliás assinalado pelo tradutor.

Mas talvez não tivesse sido esse o meu clique. Talvez uma peça de teatro do Arthur Miller, talvez um livro de contos de O. Henry, talvez o Gorki. Talvez mesmo Nietzsche, de que não percebia uma palavra e que no entanto me mantinha cativo, absorvendo parágrafos completos. (Assim Falava Zaratustra, já perceberam...).

Em todo o caso, foi assim que a minha formação se foi tecendo. Darwinisticamente. Entre tropeções bem-sucedidos, acidentes e erros que pegaram, descobertas imprevisíveis, lixo que ficou pelo caminho, deslumbramentos precoces e revelações tardias.

Atrevo-me a achar que o resultado é interessante.