sábado, 19 de dezembro de 2009

JULIO CORTÁZAR: RAYUELA




Se acaso há uma lógica, uma forma normal de agirmos quando se trata do gosto pela leitura - e eu penso que não há -, essa seria, aparentemente, a de procurarmos tudo quanto exista de um autor que nos agradou.

Assim aconteceu comigo em relação a Eça de Queirós. Julgo não exagerar ao dizer que um dia infeliz na minha vida foi, certamente, aquele em que percebi que o tinha lido de fio a pavio: dali em diante, como estava morto e não consta que tivesse alguma arca capaz de ainda nos vir a surpreender, poderia sempre relê-lo, sem dúvida, mas nunca mais teria nas mãos um livro seu, para mim virgem, todo a descobrir...

Com Júlio Cortázar, porém, o que sucedeu foi diferente. E estranho.

Conheço deste escritor um romance, e pronto! O genial Rayuela, traduzido em português por O Jogo do Mundo.
É gigantesco - uma daquelas obras que pretendem abocanhar o mundo inteiro, em todos os seus estados e qualidades. Mas trata-se, sobretudo, de um "jogo" e, enquanto tal, um prodígio de inventividade, logo a partir do pormenor conhecido de que o leitor não tem de iniciar a leitura pelo primeiro capítulo: na verdade, pode começar por onde quiser, constituindo um percurso quase pessoal, ao qual poderá opor, noutra altura, um percurso alternativo.

E este constituir de uma lógica própria no interior de um livro que possibilita, portanto, infinidades de lógicas e de caminhos, faz com que, em rigor, haja, sob a enganadora estabilidade deste romance, uma multiplicidade de romances, de que somos co-autores.

Mas, repito, isto é um pormenor. Em última análise, um capricho de autor. Mas lendo-o, sentimo-nos mergulhar num mundo de personagens inesquecíveis na sua estranheza, na sua energia descontrolada, nos seus comportamentos despudorados. Ergue-se à nossa volta um mundo - vários universos paralelos, portanto - onde a pobreza boémia tem um papel importante, e o amor desesperado, e a observação contundente do ser humano. Há uma vida quase marginal numa mansarda infecta, com vizinhos difíceis; há um concerto inesquecível; há gravidezes desamparadas...

É um livro vagaroso. Vamos desbravando terreno, relendo o que já lêramos, para rir melhor, encantados, e experimentando possibilidades: «E se, de facto, eu saltar agora quatro capítulos, que virei a recuperar a seguir? Que sentido encontrarei?»

É, ao mesmo tempo, uma experiência esgotante, como o são as paixões. Todas elas.
Largamos esta obra tão preenchidos, tão profundamente tocados pela arte de Cortázar, que, depois, tendemos a evitar o reencontro.
Comigo, assim foi. Não tenho procurado Cortázar - e não conheço dele nenhuma outra coisa, nem os seus ensaios, nem as crónicas, nem os contos. Nem tornei a pegar em Rayuela.

Porquê? Porque tenho medo de uma decepção? Porque temo não reencontrar o prazer e o gozo intensos? Porque me senti devorado, esventrado, sem forças, com a leitura impossível e infinita? Porque, simplesmente, este medo não é senão um mito de leitor, que criei? Por tudo isto? Por um pouco de tudo isto? Sabê-lo!

Qualquer dia, atrever-me-ei a procurar um conto de Julio Cortázar...

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