quinta-feira, 10 de setembro de 2009

LOUIS FERDINAND CÉLINE: VIAGEM AO FIM DA NOITE


Que poderei dizer?

Este é, porventura, um dos textos mais desconfortáveis que já escrevi. Porque não se trata somente de admirar, mais ou menos, um escritor do PSD ou do CDS - e dizê-lo. Se fosse isso...!
Trata-se de uma outra coisa: falo da experiência profundamente perturbadora que é, de algum modo, a do amor pelo abismo.

Houve pensadores e criadores que pactuaram, politicamente, com aquilo que a humanidade produziu de mais medonho. Seria tão fácil, tão linear, tão sem sombras tortuosas para nós se, ao menos, eles tivessem sido, nas suas obras, os meros arautos e apologistas do regime odioso que serviram; nada mais do que os instrumentos medíocres da propaganda, que pudéssemos execrar...

Mas porque será que, pelo contrário, alguns deles são os artistas mais sublimes que já conhecemos? Por que razão haveriam de ser, estas pessoas que escolheram erradamente, pavorosamente, os autores de uma obra que poderemos até ignorar - mas, se por acaso a descobrimos, não conseguiremos senão amar?

Heidegger, por exemplo, que foi reitor de uma fulcral universidade alemã, no auge do nazismo; marginalizou professores judeus, chegando a retirar do seu livro a dedicatória, que constava na primeira edição, ao judeu Husserl, seu mestre; redigiu alguns dos discursos mais miseráveis acerca da grandeza da Alemanha ariana e do Führer; e morreu sem nunca ter mostrado qualquer arrependimento, será, de facto, e por outro lado, o escritor da obra de filosofia em que é inaugurado um autêntico pensar contemporâneo, projectando uma nova luz sobre o passado Grego e iniciando um modo tão original de reflectir, não segundo a lupa de ideias eternas e absolutas, mas a partir do tempo e do finito?

E Ezra Pound, que enalteceu o fascismo e o nacional-socialismo, pode ser de facto o poeta de uma obra poética culta, sensível, profunda - Cantos que, à imagem da Divina Comédia, transforma em poesia uma experiência aterradora, múltipla e multímoda, falando diferentes línguas, misturando e sobrepondo os fios do vasto arsenal da cultura humana?

Elia Kazan, denunciante, vendido de todas as formas, traidor, é realmente o realizador dos filmes incomparáveis que nenhum outro realizador - à parte, talvez, Orson Welles, que redescubro recentemente no Clube de Cinema - conseguiu igualar em inteligência e força? Lodo no Cais? Ou Esplendor na Relva? Nada que não seja, de facto, de uma qualidade suprema?

Chego ao pior de todos. Ou ao melhor de todos. Apresento-o em três ou quatro tópicos: Louis-Ferdinand Céline. Colaboracionista, apoiante do regime traidor de Vichy na França ocupada, escritor cujos artigos eram pagos por jornais simpatizantes de Hitler, autor confesso de um dos panfletos anti-semitas mais degradantes que conheço. Posto isto, como hei-de lidar com o facto inequívoco de que Céline é o autor de Voyage au Bout de la Nuit, e que esta sua viagem ao fim da noite se mantém, sem dúvida, um dos poucos livros que releio frequentemente, que nunca me cansam, que vejo, nas páginas que vou passando diante dos meus olhos, respirando génio em estado puro? Todas as páginas deste livro são revolucionárias. Todas as páginas? Caramba! Cada uma das frases merece atenção, atinge e fere, cada formulação é de uma ousadia e de uma novidade perfeitas. Nada nos deixa indiferentes na sua escrita em que ouvimos, linha a linha, soar a sua «petite musique», esse sentido íntimo do seu texto, em que coisa alguma se confunde com outra coisa já antes lida, em que não há lugares comuns nem imagens gastas...

E, é verdade, há uma estética do repugnante neste livro, que afasta certas pessoas. Eduardo Prado Coelho confessava o seu repúdio: «Em Céline, o segredo íntimo de cada ser está nessa humidade viscosa e agoniada, nessa baba intestina, nessa espuma aviltante das tripas e mucosas - o nuclear é o excremencial: "ce qui guide encore le mieux c'est l'odeur de la merde". [...] O universo de Céline é um inferno visceral. - É aqui que eu entendo melhor a repugnância liminar que me suscita uma escrita que é feita de roncos, perdigotos e metáforas viscosas

Tudo bem. Eu é que padeço, talvez, de alguma perversão oculta.

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