quarta-feira, 29 de julho de 2009

SOBRE JOUBERT, AUTOR SEM LIVRO, ESCRITOR SEM ESCRITO


Foi por Maurice Blanchot, esse sagaz e estimulante crítico, que eu soube quem era Joubert.

Um belíssimo ensaio de Blanchot, intitulado Joubert e o Espaço, está dividido em partes, e essas partes têm títulos como: «Autor Sem Livro, Escritor Sem Escrito» ou «Porque não escreve ele?». E, por estes indícios, percebemos de que se trata, percebemos quem foi esse extraordinário Joubert: precisamente um autor que nunca compôs o seu livro, um escritor que nunca se traduziu em obra escrita.


Joubert ter-se-á, desde muito jovem, dado com os mais prolixos escritores: Diderot ou Restif de la Bretonne, «ambos», lembra Blanchot, «literatos de qualidade». Por outro lado, não parece que tenha sofrido de dificuldades de expressão: existem, dele, numerosas e extensas cartas que o mostram sempre um homem «feliz em palavras».

E contudo, embora trouxesse todos os dias consigo um caderno onde anotava descrições ou pensamentos, espécie de rascunhos para a sua «obra por vir» (continuamente adiada, nunca sequer iniciada enquanto tal), o certo é que não publicou coisa alguma; pior: não deixou para publicação qualquer obra. Não chegou a engendrar a unidade dos seus rascunhos, essa unidade que conferiria consistência a um todo, a um livro.

A psicologia designa hoje por «procrastinação» essa atitude de perpétuo adiamento, essa espécie de preguiça interior que faz que nos multipliquemos em percalços mínimos, «e se eu fizesse isto antes?» ou «vou só beber um copo de leite primeiro», em sucessivos desvios, ao invés de darmos início a uma certa tarefa que sabemos que teremos de executar. Mas se pusermos de parte a psicologia, em Joubert tudo se torna mais interessante: há quase uma reflexão filosófica acerca do não fazer: porque a ideia de «fazermos» carrega uma certa melancolia; há uma tristeza contida em «realizar-se» algo, porque isso significa, ao mesmo tempo, acabarmos com a beleza do que era somente projecto, do que existiria ainda em imaginação, do que está «por vir»; como se as coisas fossem melhores antes de as executarmos e, portanto, apetecesse adiá-las; como se a nossa potencial obra fosse perfeita enquanto e só enquanto não principiamos a realizá-la; como se, por antítese, o momento em que deixamos de idealizá-la para começar a realizá-la estivesse imbuído de uma secreta frustração, a percepção de que ela não é, na prática, e nunca será certamente, tão perfeita como a sonhámos...

Joubert não sabe, sequer, porque há-de escrever. Sabe que deseja fazê-lo, tem essa ambição, mas interroga-se:

«Mas qual é efectivamente a minha arte? Que fim se propõe ela? Que produz? A que dá ela origem e existência? Que pretendo eu e que quero fazer exercendo-a? Escrever e ter a garantia de ser lido? Ambição única de tanta gente! Será isso o que eu quero? Eis o que é necessário examinar atentamente, longamente, até o descobrir».

Atentamente, longamente, continuamente, como se fosse mais importante interrogar-se acerca da razão última da escrita do que dar início à escrita. Mais tarde, escreve: «Quando?, dizeis. Respondo-vos: - Quando tiver circunscrito a minha esfera».

«Sou», dirá por fim, em frases belíssimas que se assemelham ao reconhecimento do seu malogro, «confessá-lo-ei, como uma harpa eólica, que produz alguns belos sons, mas não executa nenhuma ária». Ou: «Sou uma harpa eólica. Nenhum vento soprou sobre mim».

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